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Memórias de um Estudante de Medicina Sudestino

Theodoro Carvalho Baggio


 

Os fatos aqui narrados, não obedecem rigorosamente uma ordem cronológica, pois apenas dormem na minha memória e eu não sou um cara exigente com datas.
Fim do ano de 1974. Eu e minha namorada, colega de turma, que viria a ser minha companheira e mãe dos nossos quatro filhos, comemorávamos as aprovações nas provas finais do terceiro ano na Faculdade de Medicina de Marília SP e o pensamento era sobre onde iríamos nas férias merecidas no verão de 1975.
Um encontro casual com colegas da faculdade, nos levou até a Prefeitura Municipal, onde estavam abertas as inscrições para o PROJETO RONDON.
– Só temos vagas para a Paraíba, decretou a secretária responsável pelas inscrições.
– Ótimo, queremos ir para Texeira onde amigos muito queridos já tinham conseguido vaga.
– Texeira não tem mais vaga, agora só tem pra Livramento e Desterro.
Como cavalheiro e namorado gentil, pensei em ocupar a vaga de Desterro, pois o nome assusta um pouco, deixando Livramento para a namorada.
-Em Livramento tem hospital, disse a secretária do Projeto, fazem muito parto lá.
Antes que eu perguntasse o que tinha em Desterro, além de ficar desterrado, a secretária considerou as vagas preenchidas e chamou o próximo.
Pronto; as praias de Ubatuba não faziam mais parte do nosso destino naquelas férias.
No começo de janeiro, nós, os “rondonianos” da Faculdade de Medicina de Marilia estávamos dentro de um ônibus rumo ao tão sonhado Nordeste, que tinha a famosa Paraíba, com destino final em Livramento e Desterro.
Depois de dois dias, dormindo no banco do ônibus da década de 1970, chegamos em João Pessoa.
Estávamos prontos para cumprir o lema do PROJETO RONDON: “INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR”.
Depois de dois dias na praia, com água de coco, cerveja e cachaça, cada um pegou seu rumo e fomos fazer o pouco que podíamos no sertão paraibano.
Com um estudante de Odontologia de Bauru SP e uma estudante de Serviço Social, cheguei a noite e ficamos muito bem alojados na casa paroquial, ao lado da igreja.
No dia seguinte, pela manhã, eu e o “dentista” fomos conhecer o local de trabalho.
Era um Posto de Saúde, com médico vindo de Patos uma vez por semana. O nosso estoque de medicamentos estava em armários e caixas com vermífugos, analgésicos, complexos vitamínicos, xaropes e Ampicilina, o antibiótico da época.
Esses seriam os nossos recursos terapêuticos. Além disso, seria necessário consultar os manuais e livros que vieram na bagagem. O mais importante seria focar no bom senso, para não fazermos besteiras.

ROTINA DE TRABALHO:
O “Dentista” arrancava cacos de dentes, ensinava higienização da boca e extraia dentes doloridos.
A colega “Assistente Social” fazia visitas domiciliares e orientava tudo que podia para todos que encontrava.
QUEIXAS E TRATAMENTOS:
Distribuímos vitaminas e vermífugos, não importando a queixa principal.
– Tosse e falta de ar? Tome xarope
– Fraqueza? Tome vitamina e vermífugo!
Dor? Acima do umbigo, tome dipirona. Abaixo do umbigo, tome Buscopan.
Azia? Tome antiácido
Diarreia? Tome imosec
Febre? Tome Ampicilina
Todas as queixas juntas? Espere o doutor de Patos, ou fale com o prefeito para levar na camionete da prefeitura.
Pode parecer que não fazíamos nada. Mas fazíamos muito.
Ouvíamos as queixas, anotávamos no prontuário, medíamos temperatura e pressão.
E isso curava a maior parte das doenças. Era o acolhimento. A valorização do ser humano.

DIALETOS:
Uma das dificuldades encontradas eram os termos e pronúncias que não entendíamos.
ANDAÇO (diarreia)
DESCANSAR (parir)
CACHETE DE TETRECO (cápsula de antibiótico Tetrex)
LÉGUA (medida de distância diferente de quilometro)
ESPINHELA CAÍDA (até hoje não sei bem o que é)

CASOS IMPACTANTES PARA UM ESTUDANTE LONGE DOS PROFESSORES.

1-CASO DE ORTOPEDIA.
Atendimento em um sítio distante algumas léguas.
Paciente idoso acamado com história de queda, apresentando um pé rodado lateralmente para fora do eixo.
Diagnosticado fratura de colo de fêmur: Era preciso tratamento cirúrgico
Como o paciente era de família politicamente contrária ao prefeito da época, fui informado que a transferência não seria facilitada na camionete da prefeitura.
Uma ameaça de informar a coordenação do Projeto Rondon em João Pessoa, resolveu o problema e o paciente foi transferido para Patos, onde foi operado.

2-CIRURGIA COMPLICADA.
Fui chamado para atender um menino com um corte na coxa, adquirido em brincadeira de rua.
Com instrumental do “dentista” suturei com fio dental, depois de lavar bem com álcool e receitar Ampicilina.
Esse episódio rendeu protestos amigáveis do meu colega dentista, que queria fazer o procedimento. Mas era questão de hierarquia, ou cada macaco no seu galho. Kkkk.
Esse caso também rendeu elogios e carinhos da minha namorada orgulhosa, que nesse dia tinha vindo de Livramento me visitar.

3- PERDER PACIENTE.
Atendimento noturno de uma mãe que trouxe uma criança desnutrida, desidratada e com respiração agônica.
Com a camionete da prefeitura, cedida prontamente pelo prefeito, fomos até Texeira pois lá tinha hospital e estavam os colegas da faculdade.
Foi lá que vi pela primeira vez, o Dr. Sousa; alto magro, com cara amigável e mesmo sem ver motivo de intervenção, considerando a gravidade, apoiou o meu esforço e dissecou uma veia. Após poucas gotas de hidratação, a respiração agônica virou apneia.

4- BAILE EM TEXEIRA
Nem só de trabalho era a rotina. O prefeito, que exceto pelas questões políticas municipais, era amigável, forneceu transporte na camionete da prefeitura para visitas festivas em Patos, São José do Egito e Texeira.
Um baile em Texeira foi motivo do meu encontro com os colegas da faculdade que estavam na cidade e minha namorada que veio de Livramento.
Festa rolando com forró e cerveja. Tudo ia bem até o momento em que um vaqueiro tirou minha namorada para dançar. Achamos bom ela ir, pois em festa de Jacu, Inhambu não pia.
Depois da terceira dança e os olhares ansiosos da namorada, resolvi agir. Eu ia acabar sozinho com o vaqueiro folgado.
Bem, não tão sozinho assim. Chamei o Dr. Sousa, que chegando no vaqueiro, disse – Agora é minha vez.
Recuperei a namorada e a festa seguiu.

5- RECEITA PARA RESSACA.
Um dia, depois de uma caipirinha de cachaça, a sede da ressaca exigiu um água fresca que eu encontrei na geladeira do Posto de Saúde.
Com um gole grande, tomei toda a água que estava na garrafa na porta da geladeira.
A água começou a espumar na boca e assustado vomitei o que tinha bebido.
Só me acalmei quando entendi que era água oxigenada, que o colega dentista guardava para limpeza do seu instrumental.
Quando ele chegou, reclamei do descuido de colocar água oxigenada em garrafa de água mineral e colocar na geladeira.
O pior estava por vir, quando ele gritou:
– O que você fez com os restos de dentes que estavam na garrafa? Eu estou guardando para levar para a faculdade.
Depois de outra caipirinha no fim do expediente, a raiva passou.

TRABALHO EM EQUIPE.
Uma tarde, atendendo no primeiro consultório que podia chamar de meu, ouvi vozes e gritos de dor na sala do dentista que ficava parede e meia com a minha.
_ Ai, ai, ai,
-Relaxa dona Maria, a senhora precisa ajudar.
A dona Maria só fazia grunhir e não era possível entender nada, a não ser que alguma coisa não estava bem.
Depois de muitos ais e grunhidos ininteligíveis, a guerra cessou.
Logo depois aparecem o Rui e dona Maria com caras de exaustos.
– Pra mim chega, tentei tudo.
Dona Maria concordou com a cabeça.
É uma luxação da ATM, diagnosticou o Rui. Fiz todas as manobras, mas o côndilo não entra no lugar.
-Posso tentar, perguntei.
-Pode, mas não vai conseguir, precisa fazer anestesia geral.
Coloquei luvas e ia introduzir os dois polegares na boca desarticulada da dona Maria.
O Rui resolveu me orientar e disse. – Tem que enrolar a mão em uma toalha, pois pode haver um trismo e a paciente morder.
Enrolei a mão em uma toalha e enfiei os dois polegares na boca da dona Maria, tentando chegar até a Articulação Temporomandibular.
Antes que eu fizesse força, a paciente gritou, mas não era de dor.
Tirei a mão com a toalha e ela gritou- Obrigada Doutor.
Até hoje, não sei como e nem porque, a manobra funcionou e dona Maria sorria agradecendo.
Sem dúvida, esse foi o meu maior sucesso como médico no Projeto Rondom. Pena que foi na área da Odontologia.

PODE CONFIAR.
Um dia, apareceu um vendedor de jogo do bicho.
Como o sonho de ficar rico é uma constante no ser humano, pedi orientação como jogar.
Usando sonhos e intuições, fiz um jogo e paguei, já aceitando o fato de ter jogado dinheiro fora.
Alguns dias depois vejo novamente o vendedor do jogo do bicho. E antes que eu falasse que não iria jogar, ele me entregou um envelope cheio de notas.
Deu o seu bicho na cabeça. Pode contar.
Era uma grana boa, que depois da gorjeta para o vendedor, foi usada para pagar rodadas de cerveja para os amigos que fiz na bodega.
Logicamente que continuei jogando até perder todo o valor que eu tinha ganho. Nem lembro que bicho foi.

FUNÇÃO BALANÇA.
Quando nos reunimos em João Pessoa para iniciar o retorno para São Paulo, conhecemos os colegas de outras faculdades que tinham cumprido o trabalho em outras cidades.
Fiz amizade com um estudante de Educação Física, que tinha ficado com um colega “médico” em uma cidade que não recordo o nome.
Trocando estórias da aventura, perguntei:
– O que você fez durante todo esse tempo?
– Fui balança, ele respondeu. Eu ficava na entrada do posto de saúde e como não tinha balança, eu levantava as crianças e anotava o peso não calibrado, na ficha de atendimento.
15 quilos, 12 quilos.
O “médico” precisava saber o peso para receitar os medicamentos pacientes pediátricos.
Confesso que eu admirei o EDUCADOR FÍSICO, QUE VIROU BALANÇA.
Coisas do PROJETO RONDON, que acabou, mas não deveria ter acabado.
Foi durante o Projeto, que eu e a namorada assumimos o compromisso de voltarmos para a Paraíba, e se possível vivermos aqui.
Realizamos esse sonho.
Dedico esse texto de memórias ao Dr. VALDEMAR FLORENTINO DE SOUZA FILHO, o primeiro médico paraibano que eu conheci; agradeço por valorizar e aceitar a minha indicação, como estudante de medicina, para realizar uma flebotomia em um caso perdido. Isso me acalma a alma, pois tentei salvar a criança.
Agradeço ao Dr. Sousa, que aposentado como anestesiologista em João Pessoa, voltou para Texeira, por ter salvo minha namorada das garras do cangaço no sertão paraibano. kkkkkkkkkkkk
Quando em 2010, retornei para João Pessoa para morar e exercer a anestesiologia, encontrei o Dr. Sousa como meu colega anestesiologista no Ortotrauma de Mangabeira.
COISAS DO PROJETO RONDON.

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