DR. VIRGULINO FERREIRA DA SILVA
Theodoro Carvalho Baggio
Considerações do autor:
Esta é uma ficção literária, inspirada na realidade. Aliás, como toda ficção.
Em todos os grupos sociais da humanidade, sempre tem um indivíduo, que por inspiração do
desconhecido, ou simplesmente intuindo e observando, passa a cuidar da saúde e bem estar
dos outros membros da comunidade.
Sempre tem alguém que cuida dos nascimentos, acompanha as mortes, lava feridas, espanta
maus olhados com rezas e passa fé e esperança aos que precisam.
Dedico este texto às parteiras, rezadeiras, curandeiros e xamãs, que observando a natureza,
desempenham o papel de médicos, no sertão do nordeste, desde os tempos de Lampião.
ENCONTRO COM A VOLANTE
A peleja tinha sido difícil. Mesmo com os homens cansados, famintos e desaparelhados,
Lampião e seu bando conseguiram furar o cerco da volante descansada, alimentada e bem
armada.
Sem contar quantos ficaram para trás, os sobreviventes do cerco se reuniram na gruta
escondida que servia de abrigo nas temporadas de fuga.
Lampião ordenou a Maria Bonita que reunisse todos os feridos, machucados e quebrados
dentro da gruta.
Calmamente, Lampião se despiu da vestimenta de couro. Retirou a cartucheira que
atravessava seu peito e colocou as duas peixeiras sobre uma pedra.
Comandou para Maria Bonita trazer uma camisa branca, limpa e amassada que estava na
mochila.
Se sentindo pronto para o trabalho, Lampião olhou os estropiados deitados lado a lado, e
calmamente começou a visita.
Gemendo de dor, Quinta-feira (Jorge Horácio Vilar) falou:
– Capitão.
Lampião calmamente interrompeu dizendo:
– Agora não sou nem Capitão, nem Lampião. Sou Virgulino, seu médico. Onde dói?
Quinta-feira levantou a perna da calça de couro mostrando a ferida sanguinolenta.
O Dr. Virgulino inspecionou a perna ferida, apalpou a tumefação, avaliou a vitalidade das
bordas da ferida e comandou:
– Dobre a perna, estique a perna, movimente os pés para o lado de fora e para dentro.
Palpando o dorso do pé, falou:
– Eu sinto o sangue passando para o seu pé. O Dr. Virgulino espremeu as pontas dos dedos do
pé e completou:
– Não é grave. A ferida foi só por fora. Por dentro a perna está boa.
Com água limpa coletada no arroio perto da gruta, lavou três vezes a pena com sabão em
pedra e jogando cachaça na ferida falou:
– O que arde cura, o que aperta segura.
Pediu panos limpos e enfaixou a perna ferida, dizendo:
– Não deixe mosca assentar em cima, não pise com essa perna e faça repouso.
Quinta-feira olhou seu Capitão com admiração e disse:
– Obrigado Dr. Virgulino.
O Dr., sem dizer nada se dirigiu ao próximo cangaceiro deitado.
Mergulhão (Antonio Juvenal da Silva), tapou os olhos envergonhado.
Dr. Virgulino perguntou:
– E você cabra, o que foi que aconteceu?
– Fui furado de bala. O macaco da volante atirou pelas minhas costas e quase me mata.
Virgulino comandou:
– Mostre o furo.
Mergulhão ficou vermelho de vergonha e soltando o cinto de couro, abaixou a calça,
mostrando por onde a bala tinha entrado.
A bala tinha entrado por uma bunda e saído pela outra.
O sangue escorria pelas pernas, molhando o calção branco que o cangaceiro usava sob a calça
de couro.
Virgulino lavou as mãos com água limpa esfregando o sabonete de pedra. Jogou um pouco de
cachaça nos dedos e disse:
– Não olhe pra trás cabra da peste. Não quero ouvir um pio.
Mergulhão apertou as pálpebras e pensou em Padre Cícero.
Dr. Virgulino sem demonstrar nojo, preconceito ou incômodo, enfiou o indicador da mão
direita na ferida da bunda direita, e o indicador da mão esquerda na ferida da outra bunda.
Mergulhão sentiu dor e vergonha.
O resto do bando, ria e gemia no lugar do ferido.
Dr. Virgulino interrompeu o exame e disse.
– Foi só na carne, mas o perigo é o sangramento não parar e a ferida arruinar.
Sem explicar nada, o Dr. Virgulino retirou da bandoleira que usava, um cartucho do seu fuzil e
com uma pedra retirou o chumbo da cápsula.
Batendo levemente no cartucho sem chumbo, derramou a pólvora na ferida de entrada ou de
saída da bala.
Repetiu o mesmo procedimento na outra ferida de entrada, ou de saída, da mesma bala que
tinha atingido Mergulhão.
– Deite de costas para cima, comandou o Dr. Virgulino.
Mergulhão resignado, obedeceu.
Com as duas feridas cheias de pólvora, o Dr. Virgulino, riscou dois fósforos e ateou fogo no
explosivo, dizendo.
– Isso vai parar o sangramento e matar os bichos ruins que podem se criar na ferida.
Mergulhão, deu um pinote e gritou por Padim Ciço.
– Hoje o plantonista aqui sou eu, trovejou o Dr. Virgulino. O Padim está no Juazeiro do Norte.
Lá o plantão é mais brabo.
O Dr. Virgulino passou o resto do dia atendendo o bando de cangaceiros feridos.
Enfaixou entorses de tornozelo, imobilizou fraturas alinhadas, aplicou cremes e unguentos nas
feridas, passou creme refrescante nas queimaduras por urtiga e mandou o cangaceiro Alecrim
raspar a cabeça para acabar com os piolhos que infestavam a cabeleira suja e enrolada.
Depois de atender o último cangaceiro, o Dr. Virgulino tirou a camisa branca, suja de sangue e
começou a vestir a roupa de couro.
Colocou a cartucheira enviesada no corpo, ajustou o embornal no ombro e colocando o
chapéu de couro, comandou.
– Vamos se preparar seus cabras da peste. Os macacos da volante vão voltar.
Enfim, como eu disse antes, é um pouco de ficção e um pouco de verdade, como é a nossa
vida.
SÓ SEI QUE FOI ASSIM!!!!!!!!!!!