O PRAZER DE ATENDER

José Mário Espínola


 

Muitos anos atrás, quando eu tinha iniciado o curso médico, meu pai chegou em casa com um novo livro. Ele gostava muito de ler, especialmente literatura de mistério, e sempre chegava com algum livro interessante. Mas desta vez esse livro superou a minha expectativa, pois significou um marco na minha futura vida profissional.

Tratava-se do conto policial “Um Estudo em Vermelho.” Foi o primeiro livro escrito por Sir Arthur Connan Doyle, dando vida ao personagem Sherlock Holmes.

Connan Doyle era médico principiante quando escreveu esse livro. No interior da Inglaterra, com pouco movimento no consultório, e com a cabeça prenhe de imaginação, ele produziu muitas obras, especialmente tendo Sherlock Holmes como personagem.

O livro é ótimo, e acho que ele deveria ser lido por todo estudante de Medicina. Em sua primeira aventura Holmes consegue desvendar um misterioso caso de assassinato. E o que mais me fascinou foi que ele seguiu princípios médicos de raciocínio. Pois na realidade o conto Um Estudo em Vermelho é uma aula de semiologia.

Elementar, meu caro Watson!

Quando ingressamos no curso de Medicina não pensamos outra coisa senão atender e examinar um paciente. Porém nos três primeiros períodos estudávamos as disciplinas básicas. Entre elas bioquímica, biofísica e fisiologia, que era aquilo que mais pudesse parecer com um curso de Medicina, aos olhos ignorantes e sequiosos de um iniciante.

Passado o impacto inicial, eis que finalmente seriamos introduzidos ao curso médico pra valer. Aprofundamos-nos progressivamente na Medicina, a mente se transformando até tornar-se em pensamento profissional.

Começamos por semiologia, anatomia e técnica cirúrgica. Depois viriam as outras disciplinas que fariam nos sentirmos cada vez mais como médicos, com a euforia e orgulho de estudar Medicina.

Concluímos o curso certos de que éramos mais do que médicos: éramos, na nossa realidade, semideuses! E com esse pensamento arrogante fomos despejados no mundo.

Lêdo engano! O tempo se encarregaria de nos trazer de volta à realidade, muitas vezes de forma cruel.

Os anos passam, e a nossa crista vai se curvando cada vez mais, respondendo aos reveses inevitáveis. Entramos progressivamente num processo de re-humanização, até chegarmos à forma que temos hoje.

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Mas a Medicina não pára. Ao longo de todos esses anos a ciência médica evoluiu muito, provavelmente mais que as demais ciências. Assim surgiram exames de alta tecnologia. A ciência presenteou as gerações dos médicos que examinam o paciente por fora com exames cada vez mais sofisticados, enxergando o paciente por dentro.

Foi quando surgiu a pandemia. Causada por vírus de elevadíssima letalidade e igual capacidade de transmissão, a doença exigiu o isolamento da humanidade, enquanto não surgia uma vacina específica.

Como as doenças não param, um método de atendimento médico à distância foi largamente utilizado: a tele-consulta. A tele-medicina foi então aprimorada para atender parcialmente às necessidades dos pacientes.

Parcialmente, pois não contém um recurso indispensável na quase totalidade das especialidades médicas: o contato humano!

Como ter um diagnóstico seguro, firme, sem examinar o paciente? A semiologia também fica bastante prejudicada, dependendo apenas da informação do mesmo, que quase sempre é carregada de subjetividade.

A anatomia ainda mais. Pois na maior parte das patologias a proximidade com o paciente é muito importante: a palpação do abdômen ou de membros; o odor exalado pelo paciente; a tomada do pulso e da pressão; a ausculta dos pulmões; o fácies… Enfim: nada disso nos é plenamente proporcionado pela tele-consulta.

Vou mais adiante: ver e sentir o paciente! Pois, para mim, a consulta, o exame físico, começa pelo “boa tarde” quando o paciente chega à porta do consultório: a forma como responde, o jeito como caminha, como entra, como se senta, tudo isso é observado pelo médico na introdução à consulta. É o início da semiologia. Depois vem o exame físico.

Quando um paciente adentra o consultório médico, geralmente se encontra em condições de inferioridade, tem algum grau de sofrimento. Portanto, ele entra tenso, armado. Cabe ao médico desarmá-lo, deixá-lo à vontade, senão a anamnese, a semiologia, serão prejudicadas.

Deve fazer tudo isso tendo o cuidado de não baixar o nível a tal ponto que possa chocar o paciente. Se o médico assim o fizer, começa a perder a credibilidade, pois o paciente busca alguém profissionalmente superior que tenha resposta para os males que lhe afligem.

Começar batendo um papo sobre a saúde dele, a anamnese, é um bom começo. Pouco a pouco ele irá se abrindo, o que facilitará o trabalho do médico. Só então é chegado o momento do exame físico. Depois, analisar os exames já disponíveis.

Só então o médico estará pronto para elaborar a sua hipótese de diagnóstico e traçar um plano de tratamento. Se necessário, solicitar exames complementares.

A essa altura o paciente se anima a sugerir exames. O médico, então, explicará que os exames são instrumentos complementares à hipótese de diagnostico por ele elaborada, solicitados para confirmar ou excluir doença. Assim, conseguirá evitar exames desnecessários, como as vitaminas que estão em moda, por exemplo.

Claro que isso demanda tempo, quando da primeira consulta. Cabe ao médico saber administrar o tempo. Assim ele conseguirá manter uma relação médico-paciente bem equilibrada. O paciente sairá muito satisfeito, deixando o médico com a agradável sensação de ter feito o bem.

Isso jamais se obtém com o atendimento à distância. Tele-consulta é, para mim, como jogar xadrez pela internet: não tem gosto!

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Para concluir conto uma historinha que ouvi muitos anos atrás, que ilustra muito bem como é difícil a relação médico-paciente.

Um certo dia Jesus viu lá de cima o trabalho de um médico num ambulatório do velho INAMPS. E ficou apiedado com o estado de exaustão em que ele se encontrava.

Então desceu à terra, lá dentro do consultório, e mandou que o médico fosse dar um cochilo. Vestiu o jaleco e mandou entrar o próximo.

O paciente entrou, e mal havia se sentado quando Jesus lhe interrompeu a fala, dizendo:

“Vá para casa tomar este remédio, que será curado!”

O homem saiu desanimado, e outro paciente perguntou como era o novo médico. Respondeu:

“Igual aos outros: mal olhou pra mim e foi logo dando uma receita. Num tirou nem a minha pressão!”

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Brincadeiras à parte, o médico tem formação suficiente para evitar situações como essa descrita acima. Basta ser humano. Muitos pacientes não têm doenças, e procuram o médico só para se comunicar com alguém, ser ouvido. Seguindo a sua consciência, com o tempo ele deixará de atender apenas por dever de ofício, para sustentar a família.

E descobrirá o prazer de atender!

Dr. José Mário Espínola
Cardiologista

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