Em 29 de dezembro de 2005 o jornal britânico The Times publicou uma crítica às autoridades de saúde da Inglaterra (NICE), quanto ao atraso na liberação para uso de novas tecnologias (inibidores da aromatase de 3ª geração), no tratamento do câncer de mama. Argumentam que o sistema de saúde escocês não faz as mesmas restrições, que mulheres com câncer de mama (32.000 novos casos/ano) irão morrer aguardando as decisões do NICE e lança mão de declarações de especialistas a favor da prescrição dessas drogas. No contraponto, o National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE) explica que não há restrição à prescrição dessas medicações no país, em detrimento de não haver guias clínicas regulando o uso, e que as organizações locais do National Health System (NHS) devem avaliar os dados científicos disponíveis, antes de tomar qualquer decisão1. A reportagem se sustenta, ainda, no Ensaio Clínico BIG, em andamento, o qual compara o tratamento, com tamoxifeno ou inibidor da aromatase, de 8010 mulheres menopausadas, portadoras de câncer de mama invasivo, hormônio-dependente. Apesar de o protocolo estabelecer seguimento de cinco anos, foi divulgado resultado de análise interina, após seguimento médio de 25,8 meses2. Entre os benefícios relatados, nessa análise, encontram-se aqueles relativos à sobrevida livre de doença (tempo a partir da randomização até a ocorrência de um dos seguintes eventos: recorrência local, regional ou à distância; câncer na mama contralateral; câncer diferente de mama ou morte sem um evento de câncer prévio). O hazard ratio estimado desses eventos foi de 0,81 (IC: 0,7 – 0,93; p=0,003), induzindo ao conceito de benefício de 19%. Entretanto, o risco absoluto de eventos no grupo do inibidor da aromatase foi de 8,8% e no grupo do tamoxifeno de 10,7%, sendo, na verdade, a redução do risco desses eventos, e, portanto, o benefício de 1,9%. Não houve diferença significativa na mortalidade global entre as duas formas de tratamento2. Em relação ao risco de danos produzidos pelos inibidores da aromatase, a análise de subgrupo verificou aumento significativo na ocorrência de fraturas, artralgia e eventos cardiovasculares graves, nesse grupo, com aumento do risco absoluto de 1,7%, 8% e 1%, respectivamente (p<0,001). Em contrapartida, houve redução significativa de eventos tromboembólicos e de sangramento vaginal, com redução do risco absoluto de 2% e 3,3%, respectivamente (p<0,001) 2. O uso de inibidores de aromatase comparado ao uso de tamoxifeno nesse grupo de pacientes foi estudado em outros ensaios, como o ATAC3 e o MA-174. No ensaio ATAC, após seguimento de 68 meses, o risco absoluto de eventos no grupo do inibidor da aromatase foi de 18,6% e, no tamoxifeno, de 21%, com redução do risco absoluto de 2,4%. A redução de risco relativo foi de 12%. Não houve diferença significativa na mortalidade global. Nesse tempo de seguimento, apenas 8% dos pacientes permaneciam em tratamento3. No ensaio MA-17, em seguimento médio de 2,4 anos (interrompido na análise interina), o uso do inibidor da aromatase, após cinco anos de tamoxifeno, quando comparado ao placebo, estimou redução progressiva no risco da ocorrência de eventos (hazard ratio), no primeiro, segundo, terceiro e quarto anos, de 0,8 (0 a 1,5), 1,9 (0,6 a 3,3), 5 (2,7 a 7,3) e 6 (2 a 10,1), respectivamente. Em análise de subgrupos, apenas as pacientes com acometimento linfonodal tiveram redução na mortalidade4. Devemos, entretanto, ser cautelosos ao interpretarmos resultados de análise de subgrupos, uma vez que há resultados controversos da análise dos mesmos subgrupos entre grandes ensaios randomizados diferentes. No ensaio ATAC3, o benefício do inibidor de aromatase foi visto predominantemente em pacientes que não receberam quimioterapia adjuvante e naquelas com doença linfonodal negativa, enquanto, que no ensaio BIG2, o grande benefício foi a pacientes que receberam quimioterapia e naquelas com doença linfonodal positiva. Comentário O tema abordado pelo jornal The Times, no tratamento do câncer de mama, vem sendo discutido há algum tempo na literatura médica. E, enquanto espera-se resultados mais maduros e adicionais de ensaios utilizando os inibidores da aromatase de terceira geração, muitos pacientes e médicos decidiram pelo seu uso, tanto como terapêutica inicial de adjuvância ou após um curso de tamoxifeno. Entretanto, algumas considerações críticas, que por certo sustentam a postura cautelosa do NICE, devem ser reconhecidas, e compõem uma série de questões a serem respondidas: 1. Inibidores da aromatase são mais efetivos se usados como terapia inicial ou após o uso de tamoxifeno? Por quanto tempo o tamoxifeno deve ser administrado após o cross-over ter sido realizado? 2. Quais são os riscos e a toxicidade a longo prazo? Esse risco pode ser modificado pelo uso de outras intervenções médicas? 3. Há populações específicas de pacientes, com graus diferentes de benefício, com o uso de inibidores da aromatase, em comparação ao uso de tamoxifeno ou nenhum tratamento? Qual a recorrência tardia? 4. Há populações específicas que estão sob grande risco de toxicidade dos inibidores de aromatase? 5. Por quanto tempo o inibidor da aromatase deve ser utilizado? 6. Os inibidores da aromatase de terceira geração podem ser utilizados de maneira alternada? Há diferença de toxicidade entre eles? 7. Qual a duração ideal da terapia com inibidor da aromatase na área da adjuvância? O inibidor da aromatase deve ser mantido mais do que cinco anos fora do ambiente do ensaio clínico? Em relação aos participantes envolvidos na reportagem, podemos considerar que: 1. Os especialistas que forneceram declarações ao The Times tinham a responsabilidade de fornecer informações obtidas por meio de uma revisão sistemática e crítica da evidência científica disponível; 2. O sistema de saúde (NICE) tem a responsabilidade de fornecer diretrizes clínicas, levando em consideração todos os aspectos envolvidos no uso de novas tecnologias, mas principalmente, focando a segurança dos pacientes, atrelada a um real e consistente benefício individual e coletivo; 3. O jornal britânico The Times tem a responsabilidade de, centrando no interesse e no adequado esclarecimento dos pacientes, divulgar informações cuja procedência se utilize de uma linguagem explícita, que informe os benefícios, os limites e os danos implicados no uso da nova tecnologia. Wanderley Marques Bernardo Cristina Nunes dos Santos Tatiana Franco Hirakawa Referências 1. Delay over top cancer treatment for women. The Times. December 29; 2005. Avaliable from: http://www.timesonline.co.uk/article/0,,8122-1961905,00.html. 2. Thurlimann B, Keshaviah A, Coates AS, Mouridsen H, Mauriac L, Forbes JF, et al. A comparison of letrozole and tamoxifen in postmenopausal women with early breast cancer. N Engl J Med 2005; 353:2747-57. 3. Howell A, Cuzick J, Baum M, Buzdar A, Dowsett M, Forbes JF, et al. Results of the ATAC (Arimidex, Tamoxifen, Alone or in Combination) trial after completion of 5 years' adjuvant treatment for breast cancer. Lancet 2005; 365:60-2. 4. Goss PE, Ingle JN, Martino S, Robert NJ, Muss HB, Piccart MJ, et al. A randomized trial of letrozole in postmenopausal women after five years of tamoxifen therapy for early-stage breast cancer. N Engl J Med 2003; 349:1793-802.

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