Brasília (Câmara) – As frentes parlamentares contrárias à descriminalização do aborto aumentam a mobilização contra a proposta de realização de plebiscito sobre o tema – defendida pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Em parceria com entidades civis e religiosas, elas planejam fazer no dia 15 de agosto a Marcha Nacional Cívica Contra a Legalização do Aborto. Um dos objetivos é obter do presidente Lula uma posição mais clara. Lula se declarou “pessoalmente” contrário ao aborto, mas destacou que ele deve ser tratado fora do viés moral e religioso, e sim com foco na saúde pública. O combate ao aborto está na pauta de pelo menos quatro frentes parlamentares ativas (formalmente e informalmente): a Frente Parlamentar Evangélica; a Frente Parlamentar Contra a Legalização do Aborto – Pelo Direito à Vida; a Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida; e a Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto. Não há nenhum grupo de deputados ou de senadores organizado em defesa da descriminalização do aborto. “Queremos que a marcha de agosto chegue até o presidente Lula, porque a neutralidade dele favorece a descriminalização do aborto”, disse o deputado Luiz Bassuma (PT-BA), coordenador da frente em Defesa da Vida. Ele defendeu a revogação da portaria do Ministério da Saúde que isenta a mulher de apresentar boletim de ocorrência quando pede para abortar por motivos de estupro. Previsão legal O aborto é considerado crime no Brasil e é autorizado apenas em casos de estupro, de risco de morte para a mãe e, mediante autorização judicial, nos casos de fetos anencéfalos. A portaria à qual se refere o deputado é a 1508/05, que substitui a apresentação de um boletim de ocorrência pelo preenchimento, por parte da mulher e do médico, de um “relato circunstanciado” do estupro. Luiz Bassuma e o deputado Miguel Martini (PHS-MG) são autores do Projeto de Lei 478/07, que cria o Estatuto do Nascituro e retira o direito da mulher de abortar em caso de estupro. Nesse caso, a proposta dá direito à pensão alimentícia de um salário mínimo, até a criança completar 18 anos. A pensão deverá ser paga pelo estuprador e, caso ele não seja identificado, pelo Estado. De acordo com a proposta, nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. Estão incluídos nesse conceito os embriões fertilizados “in vitro” e os produzidos por meio de clonagem ou por qualquer outro meio “cientificamente e eticamente aceito”. 26 projetos tramitam na Câmara Tramitam na Câmara 26 projetos relativos ao aborto (favoráveis ou contrários). A maioria das propostas sobre a descriminalização está apensada ao Projeto de Lei 1135/91, do ex-deputado Eduardo Jorge, que retira do Código Penal o artigo que pune com detenção de um a três anos a mulher que provocar aborto em si mesma ou consentir que outro provoque nela. Entre essas matérias está o PL 660/07, da deputada Cida Diogo (PT-RJ), que autoriza o aborto em nascituros com anomalia “grave e incurável” que impeça a vida fora do útero. Apesar de o seu projeto restringir a possibilidade de interromper a gravidez, a deputada é favorável à descriminalização do aborto realizado até aproximadamente a oitava semana de gestação. “Eu jamais faria um aborto, mas as mulheres que quiserem devem ter a opção de usar métodos limpos e adequados. É um absurdo pretender transformá-las em criminosas e ainda punir os médicos”, declarou. Segundo ela, a descriminalização também poderia ser vista como uma forma de preservar a família, pois é comum a morte entre mulheres que fazem abortos clandestinos em más condições de atendimento e deixam filhos órfãos, “que perdem a referência materna”. Ainda segundo a deputada, a decisão de realizar um aborto é traumática, e por isso é necessário o acompanhamento psicológico. Petista se manifesta contra plebiscito A deputada petista Cida Diogo critica os defensores da manutenção da gravidez em casos de impossibilidade de vida fora do útero, porque o processo causa riscos à mãe. “A mulher pode sofrer eclampsia, infecções graves, hemorragias e anemia ao longo de nove meses para manter no seu útero um feto que vai sobreviver apenas algumas horas. É direito das pessoas ligadas a religiões passarem por isso por opção, mas é muito cruel com aquelas que prefeririam interromper a gravidez”, argumentou. A deputada defende que o tema seja restrito às discussões no Congresso, e se diz contrária à realização de plebiscito. “Haveria grande manipulação de informações, assim como ocorreu no referendo do desarmamento”, disse. Mais civilizado Bassuma argumentou que “nenhuma mulher é obrigada a ser mãe” até a fecundação. Depois, “ela não tem mais direito” de recusar a situação, e “o mais civilizado” é encontrar alternativas para garantir a vida. “O estuprador deve ser duramente punido e a mulher deve receber ajuda psicológica, mas não se pode punir com a morte uma criança”, afirmou. O deputado é contrário ao plebiscito, por acreditar que temas relacionados à vida não devem ser questionados. “Legalizar o aborto é permitir que o Estado lave as mãos; é a volta ao tempo da barbárie. Hoje é o aborto, depois a pena de morte, a eutanásia. O direito à vida não pode estar em discussão”, afirmou. Evangélicos estão ativos O deputado Pastor Manoel Ferreira (PTB-RJ) é o coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, que aborda o tema em seminários, em convenções religiosas e em visitas a creches e a “casas de senhoras”. “Estamos tentando abrir mais o debate e criar consciências, porque não temos recursos para fazer propaganda”, comentou. Ele defende a realização do plebiscito. Questionado sobre o direito de a mulher ter controle sobre seu próprio corpo, Ferreira afirmou considerar que isso não deve incluir a gestação de um filho: “A mulher tem todo o direito de decidir como se relacionar sexualmente, mas não de tirar uma vida; o útero é um lugar sagrado, quem dá a vida é Deus”. Ferreira é contrário à interrupção da gravidez em caso de estupro ou de anencéfalo: “Sou favorável ao nascimento dos anencéfalos, para que a mãe possa mostrar o filho aos amigos, tirar foto ao lado dele. É uma prova de carinho.” Permissão para anencéfalos Outra deputada com proposta sobre o assunto é Luciana Genro (Psol-RS), autora do PL 4834/05, que permite o aborto de fetos anencéfalos. Segundo ela, independentemente de conceitos religiosos é indiscutível que o aborto provocado é uma agressão e que ninguém “em sã consciência” poderia ser a favor da prática. Apesar disso, ela considera que a exigência de que a mulher mantenha o feto anencéfalo até o fim da gravidez “equivale à pratica da tortura”, por causa das complicações do parto, do sofrimento “infrutífero” e das despesas do casal e do sistema de saúde. Luciana Genro é favorável à realização do plebiscito sobre a possibilidade de descriminalização do aborto, por considerá-lo a alternativa mais democrática: “Um plebiscito ajudaria a separar a questão religiosa da situação de saúde pública. Independentemente de quem ganhasse a disputa, a discussão deixaria o tema mais claro”. Ministério vê problemas de saúde O Ministério da Saúde considera o aborto como um dos mais graves problemas de saúde pública do País. Segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), no Brasil 31% das gestações terminam em aborto; anualmente, ocorrem cerca de 1 milhão de abortos espontâneos e inseguros, com uma taxa de 3,7 casos para 100 mulheres de 15 a 49 anos. Esses números não contemplam os abortos feitos por razões médicas e legais – ou seja, aqueles permitidos pelo Código Penal, que tratam de risco de morte para a mulher e de gravidez resultante de estupro. Em 2006, esses casos foram responsáveis por 2.068 internações no Sistema Único de Saúde (SUS). A gravidade da situação se reflete no SUS. Em 2006, 230.523 internações foram motivadas por curetagens em conseqüência de complicações de abortos espontâneos e inseguros, ao custo de R$ 33,7 milhões. A curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais praticado nas unidades de internação, superada apenas pelos partos normais. As 2 mil internações relativas aos abortos por razões médicas e legais custaram ao SUS, em 2006, R$ 302,8 mil. Argumentos morais contra decisões técnicas O cientista político da Universidade de Brasília (UnB) Paulo Calmon (foto), especialista em políticas públicas, considera “perfeitamente legítimo” que argumentos morais e religiosos superem “decisões técnicas ou tomadas por burocratas” na elaboração de políticas governamentais. Segundo ele, apesar de o Estado ser laico a moral e a religião devem ser consideradas porque refletem a cultura, os valores e a noção do que é certo e errado entre a população. “A liberdade de religião e de manifestação é um princípio fundamental que não deve ser questionado”, declarou. De acordo com Calmon, o mais importante no debate em torno da descriminalização do aborto é garantir o equilíbrio nas discussões entre os grupos contrários à proposta – “mais organizados” – e aqueles que defendem a causa. “A política não é como um mercado em situação de concorrência perfeita. Há uma assimetria na capacidade dos grupos se organizarem e veicularem suas posições. Assim, é necessário haver algum tipo de intervenção, de correção e compensação, de maneira que a vontade da população seja baseada nas várias vozes”, argumentou. Ele atribuiu ao Congresso Nacional a responsabilidade de garantir a participação, no debate, de representantes das diversas posições sobre o tema. Para o professor, a primeira discussão que vem à tona é se o aborto é certo ou errado, mas haveria uma segunda a ser considerada: “Se o Estado deve determinar a possibilidade de realização do aborto ou se essa é uma decisão a ser tomada por cada família.”

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