“As políticas de Saúde no Brasil para as gestantes sempre tiveram fragilidades e a pandemia ratificou essa triste realidade”
Entrevista: Andréa Correia Nóbrega de Sá

O Brasil é o país em que mais gestantes e puérperas morreram de Covid-19. Atualmente, são apontadas como grupo de risco da doença, por poderem apresentar uma resposta mais grave ao coronavírus. Para a médica Andréa Nóbrega de Sá, os obstetras estavam acostumados a lidar com vidas, com mulheres saudáveis na maioria das vezes, mas, com a pandemia, foram pegos de surpresa. “Foi realmente assustador no início e ainda tem sido desafiador”, diz Andréa, que é graduada em Enfermagem e Medicina pelas Faculdades Nova Esperança (Facene e Famene) e com residência Médica em Ginecologia e Obstetrícia pela FAMENE.

Atualmente, ela é plantonista e diretora técnica da Maternidade Frei Damião, em João Pessoa, serviço referência para o atendimento a gestantes com Covid-19, na Paraíba. Além disso é preceptora do Internato e Residência Médica de Ginecologia e Obstetrícia da FAMENE e coordenadora do Serviço de Obstetrícia do Hospital Nossa Senhora das Neves.

Na entrevista a seguir, ela fala dos desafios diante da pandemia, como foi lidar pessoalmente com a doença, as consequências disso tudo para o atendimento pré-natal, faz uma análise sobre a assistência obstétrica na Paraíba e fala sobre a importância do cuidado com a assistência à saúde da mulher e materno-infantil, de forma integrada e acolhedora. “É essencial proporcionarmos uma experiência positiva de parto, entendendo que a mulher é a protagonista e que devemos acolher suas escolhas e respeitar sua autonomia”, completa.


Como tem sido para a sra trabalhar em uma maternidade pública referência para a Covid-19 na Paraíba? Quais os principais desafios?
O meu mantra diário tem sido: “um dia de cada vez”. Nós, obstetras, estamos acostumados a lidar com vidas, com mulheres saudáveis na maioria das vezes, que nos procuram em busca de uma assistência ao pré-natal e parto. E de repente, com o advento da pandemia, sem que houvesse um tempo de preparação, fomos simplesmente surpreendidos com essa doença avassaladora de alta transmissibilidade e potencialmente fatal. Foi realmente assustador no início e ainda tem sido desafiador. Além de todas essas questões relacionadas com a assistência, ter que inverter os papéis e me tornar paciente portadora da Covid-19, foi um verdadeiro golpe do destino. Como dizem: “os pacientes mais trabalhosos, geralmente são os médicos”. Recebi o diagnóstico no dia 23 de março de 2020, quando completei 37 anos. Ter uma notícia dessa em pleno natalício é aterrorizante. E o pior ainda estava por vir. Tivemos a perda de uma funcionária da maternidade Frei Damião, muito querida e ainda recebemos a notícia que a nossa diretora administrativa estava hospitalizada e se encontrava na UTI. Além de vários profissionais e trabalhadores de saúde que estavam sintomáticos e sem condições de trabalhar, sendo necessário interditar temporariamente a maternidade. Foi necessário elaborar de forma emergencial, um plano de contingência que pudesse contemplar fluxogramas e Procedimentos Operacionais Padrão adequados para o novo perfil de pacientes que iríamos atender; sensibilizar as equipes quanto ao uso obrigatório de EPIs; criar um novo fluxo de acompanhantes; ter que restringir visitas; promover através da educação continuada treinamentos de paramentação e desparamentação dos EPIS; criar um ambulatório de egressos para os pacientes poderem ter um seguimento pós alta; implantar o Ambulatório de Saúde do trabalhador para Covid-19; criar um Programa de Apoio Psicológico e Psiquiátrico para os profissionais e trabalhadores de Saúde da Maternidade; reestruturar o SCIH e NSP (Núcleo de Segurança do Paciente); redefinir número de leitos; suspender cirurgias eletivas e criar um Comitê de Crise de Combate ao COVID-19. Mas, em meio à tempestade, eis que surgem anjos. Tivemos o apoio incondicional da Secretaria de Saúde do Estado; de vários colegas da Saúde que uniram forças e trabalharam juntos com o mesmo propósito de salvar vidas e melhorar a cada dia o serviço para as nossas usuárias.

O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de óbitos de gestantes e puérperas acometidas pelo novo coronavírus. Para a sra, quais as principais causas disso?
As políticas de Saúde no Brasil voltadas ao atendimento de gestantes e puérperas sempre tiveram muitas fragilidades e a pandemia só ratificou essa triste realidade. Nosso país não possui uma política de testagem universal e os testes na maioria das vezes só foram disponibilizados para as gestantes com critérios de gravidade. Além disso, os centros de referência não conseguiam atingir os municípios do interior, dificultando o acesso dessa população aos serviços de alta complexidade, ou quando a regulação era viabilizada, o transporte inter hospitalar era dificultado e muitas mulheres acabavam peregrinando, e muitas vezes já chegavam muito graves nas unidades de referência. Uma outra problemática era a falta de padronização no tratamento dos pacientes acometidos com a Covid-19. Havia divergências entre especialistas e estudos sem muitas evidências que pudessem respaldar a terapêutica empregada.

A sra acredita que a pior fase da pandemia já passou? Já estamos diante de um “novo normal”?
Essa tem sido minha oração diária, mas acredito que ainda seguimos num platô, que vem oscilando com a chegada dos casos provenientes da interiorização da doença.

O isolamento social tem afetado o atendimento pré-natal das gestantes? Muitas pacientes ainda estão receosas em realizar todos os exames e consultas?
Com certeza. Temos visto uma grande lacuna de desassistência às gestantes não apenas da rede pública, mas também, da rede privada. Muitas mulheres, por temerem contrair a doença, deixaram de procurar atendimento, comprometendo dessa forma a qualidade do pré-natal e deixando a mulher cada dia mais vulnerável a várias condições de morbidade que podem comprometer o ciclo gravídico puerperal, como as síndromes hipertensivas e diabetes gestacional. Algumas seguem receosas, mas, com o advento das teleconsultas, e com a diminuição do número de casos em nosso estado, temos visto um aumento da procura por atendimentos e realização de exames. Porém, é imprescindível orientar as mulheres a só irem para as consultas e realizarem exames que realmente forem necessários, evitando o máximo de exposição.

Estudo realizado pelo CRM-PB em 2018 mostrou que 60% dos partos do Estado são feitos em João Pessoa e Campina Grande e que a maioria dos municípios não possui maternidade. Diante disso, como a sra avalia o atendimento à gestante na Paraíba?
De fato, os números atuais mostram que esse recorte persiste. A maioria dos nascimentos ocorrem nas macrorregiões 1 e 2. É preciso descentralizar o atendimento da alta complexidade fortalecendo as demais regiões, evitando que as mulheres do Sertão e dos municípios mais longínquos precisem ser removidas para a Capital. É necessário fortalecer e expandir o trabalho que a Rede Cuidar já vem desempenhando no Estado; qualificar as equipes; ampliar a oferta de programas de residência médica e de enfermagem obstétrica nas maternidades do sertão e alto sertão; melhorar os processos de trabalho, reestruturando hospitais já existentes com implantação de linhas de Cuidado, dos Núcleos de Regulação Interna (NiR); e de indicadores de saúde que possam avaliar e melhorar a qualidade da assistência oferecida; contratar profissionais alinhados ao novo modelo de assistência obstétrica; deixar a enfermagem obstétrica assumir a linha de cuidado das gestantes de risco habitual e os obstetras assumindo o alto risco.

A sra fala da importância de uma experiência positiva de parto. Como seria essa experiência?
Proporcionar uma experiência positiva de parto é entender que a mulher é a protagonista, acolhendo suas escolhas e respeitando sua autonomia. É estar ao lado durante toda a assistência ao trabalho do parto e parto; é garantir a vitalidade fetal através de ausculta fetal intermitente; é evitar intervenções desnecessárias; é possibilitar um contato pele a pele e respeitar a hora ouro. É seguir as recomendações da OMS relacionados às boas práticas de assistência ao parto. Esse é um dos nossos lemas: oferecer uma experiência positiva nesse momento tão sublime na vida de uma mulher e da família.

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