Esperar meses por exames laboratoriais e por consultas especializadas, peregrinar atrás de uma vaga nos hospitais públicos, não conseguir remédios essenciais gratuitamente, deparar-se com paralisações dos profissionais e morrer a caminho de socorro médico são algumas das situações, cada vez mais, vivenciadas pelos paraibanos que dependem, exclusivamente, do Sistema Único de Saúde (SUS) e que correspondem a 3,3 milhões de pessoas. Na avaliação das entidades médicas, a crise na saúde pública da Paraíba agravou-se, nos últimos dois anos, atingindo principalmente o setor hospitalar. De acordo com o diretor do Departamento de Fiscalização do Conselho Regional de Medicina (CRM/PB), João Alberto Morais Pessoa, a rede assistencial já vive um colapso e 90% dos hospitais que prestam serviços ao SUS/PB não deveriam funcionar porque colocam a vida da população em risco. Devido à falta de condições de trabalho e à defasagem dos procedimentos pagos pelo SUS, hospitais de, pelo menos, 14 cidades fecharam e profissionais iniciaram o descredenciamento da rede pública. No dia 16, a crise culminou na paralisação dos médicos cirurgiões em João Pessoa e, três dias depois, na morte da paciente cardiopata Elizângela Nonato, o que levou o Ministério Público da Paraíba (MP) a ingressar com uma ação civil pública na Justiça contra a Secretaria Municipal de João Pessoa, os médicos e os hospitais para garantir que as cirurgias sejam realizadas. O caos fez com que o Ministério da Saúde (MS) liberasse, na última quinta-feira, R$12,371 milhões em caráter emergencial para a ampliação do teto dos serviços de média e alta complexidade, como os procedimentos cirúrgicos. Segundo o presidente da Associação Médica da Paraíba, Evandro Pinheiro, há anos, existe um grande descaso com a saúde pública por parte de todos os poderes públicos e as principais causas da crise no setor são o subfinanciamento e o mau gerenciamento dos recursos. 106 cidades têm problemas graves Em todos os 106 municípios visitados pelo CRM/PB, nos últimos três anos, os serviços de saúde apresentaram problemas graves, como condições prediais precárias; falta de médicos, de medicamentos e equipamentos; ausência de comissões de controle de infecção hospitalar, de laboratórios e serviço de esterilização em desacordo com as normas de segurança da Vigilância Sanitária. Dez hospitais passaram por interdições éticas e cinco ainda continuam interditados. Nos últimos oito meses, o conselho interveio nos hospitais Arlinda Marques (em João Pessoa), Vanildo Brito (São João do Cariri), Sancho Leite (Teixeira) e na Fundação Médica de Gurjão (Gurjão). Somente no município de Teixeira e região, estima-se que mais de 30 mil pessoas tenham sido prejudicadas com a interdição ética da unidade. Segundo o presidente da Associação Paraibana de Hospitais (APH), Francisco Santiago Pereira, nove em cada 10 hospitais da Paraíba são filantrópicos e privados conveniados ao SUS e todos eles enfrentam problemas financeiros. “O problema já dura mais de 12 anos e a grande maioria dos hospitais está com dívidas que chegam a corresponder a seis meses de seu faturamento. Já vivemos um colapso no setor hospitalar. Somos campeões em amputações, por exemplo, e isso ocorre porque o SUS não oferece exame de arteriografia, um procedimento que custa, na rede particular, cerca de R$ 2 mil. O sistema já está falido”, concluiu. Equipamentos penhorados em Soledade Em Soledade todos os equipamentos do hospital – que antes era administrado pela Fundação Médico Hospitalar Joaquim Araújo – estão penhorados pela Justiça do Trabalho por causa de dívidas adquiridas ao longo de 30 anos. Por conta disso, a população é encaminhada aos hospitais de Campina. Para a AHP, a crise se deve à defasagem da tabela de procedimentos pagos pelo SUS (que, em média, chega a 150%) e à alta carga tributária a que são submetidos os hospitais particulares. Para ele, algumas das soluções são a diminuição da carga tributária dos hospitais particulares e a regulamentação da Emenda Constitucional 29 que garante percentuais mínimos a serem investidos. Greve vira caso de polícia Em Patos, a greve dos médicos obstetras, que durou 11 dias, virou caso de polícia, já que a família da dona-de-casa, Dione da Silva Almeida Ramos, 20 anos, teve que prestar queixa na delegacia para garantir que seu parto fosse realizado. O médico só resolveu atender a paciente depois que a delegada da cidade, Ilmara Mendes, entrou em contato com uma das enfermeiras. A acompanhante de Dione, Maria Selma Ramos, 48, disse que fez mais de dez viagens para tentar convencer o médico de que a gestante estava prestes a perder o bebê. “Quando já não sabíamos mais o que fazer, resolvemos pagar R$ 80 numa ultra-sonografia. Foi aí que o médico da clínica particular afirmou que se ela não tivesse o bebê até o final da noite, ele não resistiria”, contou. Sob pressão policial, o médico realizou o parto de Dione e hoje a família comemora o nascimento de Danilo da Silva Ramos. “Os dois são vitoriosos por terem sobrevivido a tudo isso”, falou Joacir. Sem médicos à noite e fins de semana Devido à ausência e ao fechamento de hospitais, os atendimentos de urgência e emergência acabam sendo realizados, em muitas cidades, pelas equipes do Programa Saúde da Família (PSF), que deveriam ser responsáveis apenas por serviços de atenção básica e de promoção à saúde. Nos finais de semana e à noite, a população fica desassistida e se vê obrigada a percorrer quilômetros de distância, rumo aos grandes centros, em busca de atendimento médico. Em Junco do Seridó, por exemplo, o prédio do hospital está sendo usado como posto de saúde e segundo os moradores, a presença do médico é rara. Assistência só até as 17h A população não tem assistência médica após às 17h e somente o motorista da ambulância fica de plantão para atender qualquer ocorrência. “Antes, o hospital realizava até partos e fazia ligação de trompa nas mulheres que precisavam; agora é só esse atendimento básico. Tenho oito filhos e quando alguém adoece, tenho que levar para Campina Grande. Se uma mulher entrar em trabalho de parto só tem o motorista para levar para Campina”, contou o comerciante José Oliveira de Araújo, 58 anos. Já no hospital de Juazeirinho, os corredores ficam lotados de pacientes à espera do atendimento, que, segundo a população, só ocorre durante o dia. Diariamente, o médico que atua na unidade chega a realizar 80 atendimentos. Capital tem sobrecarga Frente à dificuldade de conseguir atendimento nos serviços de saúde de seus municípios, muitos usuários “migram” e acabam sobrecarregando os hospitais das grandes cidades e enfrentando grandes filas para conseguir atendimento. Segundo a secretária de Saúde de João Pessoa, Roseana Meira, das 238.593 internações realizadas em todo o Estado, em 2006, 33,34% foram feitas em hospitais da Capital e metade dos usuários que são atendidos na rede de serviços especializados e na rede hospitalar da cidade são oriundos de outros municípios. Para Roseana, muitos atendimentos poderiam ser evitados, se os moradores pudessem contar com bons serviços em suas cidades: “Na maternidade Cândida Vargas – centro de referência para mulheres com gravidez de alto risco – 90% dos casos atendidos são procedimentos simples de partos normais e cesarianas em mulheres que poderiam ser acompanhadas na cidade de origem”. Em Campina Grande, a defasagem causada pelos serviços não pactuados no teto da saúde, em 2005, foi de R$ 1,5 milhão por mês. Somente os pacientes de Pernambuco custaram R$ 7 milhões. Mais de 60% do serviço de oncologia da Fundação Assistencial da Paraíba e do Hospital Universitário Alcides Carneiro é utilizado por pacientes de cidades que não são pactuadas com o município. Peregrinação de vítima de AVC A dona-de-casa, Terezinha da Silva Costa, 58 anos, teve que percorrer 53 quilômetros, passar por cinco hospitais e enfrentar uma demora de 13 horas para conseguir uma vaga na UTI e ser socorrida, em João Pessoa. Ela teve um acidente vascular encefálico (conhecido como AVC), em outubro de 2006, na cidade de Rio Tinto, onde mora e, na avaliação do filho, Adriano da Silva Costa, 26 anos, só sobreviveu por um milagre. “Ela começou a passar mal às 7h. Levei-a para o hospital de Rio Tinto, mas, chegando lá, teve que ser encaminhada para João Pessoa. Aí começou a dificuldade para conseguir uma vaga na UTI. Fomos ao Hospital Edson Ramalho, à Cândida Vargas, ao Trauma, de onde foi encaminhada para o Hospital São Vicente de Paula. Foi um dia todo de peregrinação. Só conseguimos interná-la às 20h! Minha mãe já não andava, nem falava e estava com o lado direito do corpo todo dormente. Felizmente, ela conseguiu sobreviver, mas três vizinhos meus não tiveram a mesma sorte. No mês passado, um conhecido passou mal do coração e morreu a caminho de socorro”, contou indignado. A peregrinação de Terezinha, também é conhecida pela da dona-de-casa, Maria da Guia Santos, 35 anos, e pela aposentada Francisca Linhares, 75 anos. Maria mora em Mamanguape (a 48 quilômetros da Capital) e dona Chiquinha, em São José do Brejo do Cruz (a 488,7 quilômetros de João Pessoa), mas é na capital que elas buscam efetivar o seu direito à saúde, com muito sofrimento. “Há dois meses, aguardo por uma consulta no otorrino para o meu filho de três anos. O atendimento em Mamanguape é muito ruim e a gente tem que esperar muito tempo para ser atendido. No mês passado, meu outro filho torceu o pé e não conseguiu fazer um raio X. O pedido do exame ficou um mês na secretaria de saúde e nada. Ele teve que ir para a escola com o pé doendo. Tive que alugar um carro, pagar uma consulta e o exame. Meu marido trabalha no corte de cana e fica difícil ter que assumir esses gastos”, lamentou Maria. Abandono Paraibanos que vêm do interior acabam se alojando em casas de apoio para realizar os tratamentos de saúde que precisam, na Capital. Os pacientes de São José do Brejo do Cruz, por exemplo, ficam alojados na residência particular da prefeita da cidade, Maria da Natividade Saraiva Maia. “O município não dispõe de infra-estrutura nenhuma. Não há água tratada e já tivemos um surto de hepatite A em crianças. Não há rua asfaltada e muito menos hospital. O município é abandonado pelo Governo do Estado. Como cidadã e gestora, jamais vou deixar alguém morrer à mingua. Por isso ofereço minha casa”, disse. R$ 100 mi são desviados, por ano, na PB A falta de recursos, o mau gerenciamento e a corrupção são as principais causas do colapso da saúde pública na Paraíba, apontadas por especialistas. De acordo com a Subsecretaria de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde (MS), o orçamento previsto para a saúde pública na Paraíba é de R$ 726 milhões e a verba destinada à saúde de cada paraibano é de R$ 201,66 por ano ou R$ 0,55 por dia. Além do subfinanciamento, a corrupção agrava o caos no setor. Segundo Fórum Paraibano de Combate à Corrupção (Focco), a cada ano, são desviados R$ 100 milhões da saúde pública em todo o Estado. Os principais desvios ocorrem através de licitações manipuladas, superfaturamento de preços, pagamentos por serviços não executados, falsificação de notas fiscais e contratação de empresas de parentes dos gestores. “Se não houvesse o mau gerenciamento e, em especial, se os desvios detectados na área não fossem tão significativos, daria para se prestar um serviço público de saúde com um mínimo de qualidade”, avaliou o Procurador Regional da República, Fábio George Cruz da Nóbrega. Outro agravante é o descumprimento da lei que exige que o Governo do Estado e prefeituras invistam o mínimo de 12% e 15% do seu orçamento em ações e serviços de saúde pública, respectivamente. De acordo com estudo divulgado em junho pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops/MS), o Governo deixou de destinar, em 2005, cerca de R$ 117 milhões, aplicando apenas 7,62% de sua receita em saúde, o menor gasto de todo o Nordeste e o quinto menor investimento com saúde do País, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul. Somente no ano passado, seis municípios não aplicaram o mínimo de 15% em saúde e 17 não chegaram nem a informar os gastos ao Siops. Falsos médicos no Interior Não bastasse a precariedade do serviço de saúde, muitos paraibanos ainda correm o risco de serem atendidos por falsos médicos. De acordo com um relatório realizado pelo CRM/PB, uma falsa médica estava atuando no hospital de Juazeirinho e, em Queimadas, eletrocardiogramas eram realizados por técnicos de enfermagem e encaminhados a Minas Gerais para que fossem dados os pareceres. Segundo o CRM, essa prática caracteriza “o exercício ilegal da profissão e conduta antiética da empresa e dos médicos mineiros”. Municípios Nos municípios de Assunção, Bonito de Santa Fé, Caiçara, São João de Espinhares e Lucena, estudantes de Medicina estavam atendendo irregularmente a população. “Há quinze dias, flagramos um estudante de Medicina da UFPB atendendo, sem o acompanhamento de um médico, no hospital de Lucena. Ele já foi denunciado para o Ministério Público e deverá ser processado por exercício ilegal da profissão. Há quatro anos, desenvolvemos um trabalho educativos nas universidades e tentamos conscientizar os estudantes para que eles não atuem nos serviços sem acompanhamento médico, mas não obtivemos sucesso e por isso, passaremos a denunciá-los, juntamente com os médicos envolvidos, para coibir essa prática”, avisou João Alberto. Gurjão e São João do Cariri não têm hospitais funcionando A falta de profissionais e equipamentos nos hospitais das cidades de Gurjão e São João do Cariri fez com que o Conselho Regional de Medicina (CRM) interditasse o atendimento médico por tempo indeterminado. No caso de Gurjão, o hospital foi interditado em novembro de 2006 e o PSF é o único tipo de atendimento de saúde que existe para a população. Mesmo assim, os gestores municipais afirmam que a situação está sob controle. Cerca de 10 mil pessoas residem nos dois municípios e a demanda de urgência e emergência é direcionada para Serra Branca ou Campina Grande, provocando superlotação nos hospitais. Em Serra Branca, cerca de 100 pessoas são atendidas por dia e somente no Hospital Regional de Urgência e Emergência de Campina Grande, são mais de 360 atendimentos diários. Na manhã da última quarta-feira, não havia nenhum profissional da área médica no PSF de Gurjão. De acordo com a auxiliar administrativa Michelânea Teixeira Vidal dos Santos, os médicos e enfermeiros estavam participando de um treinamento em Campina Grande. O prefeito de Gurjão, José Carlos Vidal, disse que não existe nenhum problema no atendimento da saúde no município. De acordo o prefeito, R$ 3 mil por mês deixaram de ser repassados para a Fundação Médico Hospitalar de Gurjão porque a direção não apresentava a prestação de contas. O diretor da fundação, Ubiratan Queiroz, disse que todas as exigências do CRM foram praticamente cumpridas e continua tentando reabrir o hospital. “Eles exigiram a aquisição de equipamentos como laringoscópio, tubos endotraqueais, desfibrilador e eletrocardiograma, que já foram comprados, mas estamos com dificuldade de contratar os médicos com um repasse de apenas R$ 4,5 mil por mês”, argumentou. A Fundação de Gurjão não recebe verbas municipais, apesar da Secretaria de Saúde receber quase R$ 100 mil do Fundo Nacional de Saúde por mês, para os gastos com os programas de saúde pública. Em São João do Cariri, o diretor da Fundação Médico Hospitalar, Roberto Medeiros, disse que o hospital cumpriu todas as exigências do CRM em relação à aquisição de equipamentos, mas o hospital continua fechado. R$ 1,2 mil desviados Em Taperoá, a obra de reforma e ampliação do hospital foi paralisada desde 2002 e mais de R$ 1,2 milhão em equipamentos foi desviado do prédio. Para que a população não ficasse sem atendimento médico, o Governo do Estado alugou outro prédio onde ainda hoje funciona o hospital em condições irregulares. O Ministério Público deu um prazo de 60 dias para que a diretoria técnica regularize a situação, caso contrário o prédio será interditado. Em 2003, equipamentos e materiais destinados à unidade para a realização de pequenas cirurgias (como pinças, agulhas, tesouras e até incubadoras) foram desviados. Segundo o prefeito, Deoclécio Moura, o material foi levado com o argumento de que seria utilizado em outros hospitais, como o de Santa Luzia, mas até hoje não existe uma informação oficial sobre o caso. Deoclécio informou que o antigo hospital funcionava em péssimas condições e foi elaborado um projeto de ampliação dos leitos, de 31 para 81. “Essa obra foi licitada e ao mesmo tempo a gente conseguiu articular o investimento de mais de R$ 1,2 milhão em equipamentos que seriam utilizados tão logo a obra ficasse pronta. Na época, com apenas R$ 1 milhão a obra seria concluída, mas já se passaram quatro anos e o prédio está aí. A prefeitura paga um vigilante para evitar que se leve o que ficou”, falou. De acordo com o promotor de Justiça João Benjamim Delgado Neto, o prédio onde o hospital funciona atualmente apresenta várias irregularidades. “A primeira é que não existe direção técnica nomeada. A diretora trabalha no PSF de Cabedelo e só vem para a cidade às sextas-feiras”, disse. Funcionamento A diretora do Hospital Distrital de Taperóa, Maria das Graças Monteiro Farias, não estava na cidade e a diretora adjunta, Ângela Valentim, não permitiu que a nossa equipe de reportagem entrasse no prédio onde funciona o hospital. Ela argumentou que o hospital estava funcionando normalmente apesar de não ter sequer o aparelho de radiografia.

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