Por Dr. Marcelo Gonçalves Sousa
Médico CRM-PB: 5438
Cirurgia Geral RQE: 3477
Cirurgia do Aparelho Digestivo RQE: 3478
Membro da câmara técnica de cirurgia digestiva do CFM
“A medicina do futuro será feita pelos humanos que sobreviverem a ela.”
Vivemos um momento singular na história da medicina. A profissão que por décadas foi sinônimo de prestígio, estabilidade e sucesso enfrenta hoje uma reconfiguração sem precedentes. De um lado, jovens ingressam nos cursos de medicina movidos por expectativas construídas — muitas vezes — por pressões familiares, dores pessoais ou idealizações sociais. De outro, médicos experientes se veem esgotados, desmotivados e, por vezes, desconectados daquilo que os fez escolher essa trajetória.
A verdade é que muitos iniciam a faculdade sem um real alinhamento com suas motivações, às vezes, até emancipando fases, de quem ainda nem entendeu a que estava. A escolha se baseia na dor, na busca por validação ou por segurança financeira, e não em um propósito verdadeiro. Famílias, escolas e até as instituições reforçam o mito de que ser médico é a única rota para “ajudar pessoas” ou “mudar o mundo”. Com isso, crianças e adolescentes perdem a liberdade de serem crianças — pressionadas por agendas, cursinhos, disciplinas e metas que ignoram suas fases naturais de desenvolvimento emocional e social.
Durante o curso, o peso das exigências, o ritmo desumano e a idealização de uma carreira sem falhas vão corroendo o entusiasmo inicial, porém alguns, não se preocupam, afinal, independente da forma que estejam no curso, estão com justificativa por muito tempo. Após a formatura, a realidade do mercado impõe um choque: altos custos, plantões exaustivos, baixa valorização, e muitas vezes, a necessidade de trabalhar em áreas que não condizem com seus interesses.
Médicos recém-formados, com expectativa de grandes consultórios e sucesso imediato, deparam-se com um padrão de vida rebaixado à classe média, mesmo após anos de estudo intenso. Para muitos a conta financeira não fecha mais, levando em consideração com o tempo e os gastos na formação.
Além disso, há uma cobrança silenciosa: manter um status, representar um ideal, corresponder à imagem de “excelência” que a sociedade projeta. Muitos profissionais relatam sentir-se valorizados apenas pelo que representam para a medicina, e não por quem realmente são. Essa desconexão gera adoecimento emocional, baixa autoestima e até abandono da profissão.
Contudo, vivemos também uma era de oportunidades. A inteligência artificial, longe de substituir o médico, pode libertá-lo para ser mais humano. Automatizando tarefas repetitivas e otimizando diagnósticos, a IA oferece tempo e liberdade para o médico se reconectar com o que há de mais essencial: o cuidado, o vínculo e a escuta. Para isso, é essencial abandonar o medo e abraçar a tecnologia como aliada — o profissional que não compreender essa virada digital ficará obsoleto.
Mais do que nunca, o médico do futuro precisa dominar as chamadas soft skills: inteligência emocional, empatia, criatividade, liderança, autoconhecimento e capacidade de lidar com problemas complexos. Essas habilidades — que nenhum algoritmo poderá substituir — serão o diferencial em um mundo cada vez mais automatizado.
Além disso, é preciso compreender que ser médico hoje exige também uma visão de gestão de carreira. Gestão do tempo, do consultório, das finanças e, principalmente, da própria imagem profissional. O médico é também um comunicador, um estrategista, um líder. E entender essa multifacetação é parte da jornada moderna da medicina.
A formação técnica, título especialista, RQE, pós-graduação e a residência médica de qualidade já não são diferenciais — são obrigações, atenção, digo de qualidade. O que definirá o médico do futuro será sua capacidade de integrar ciência, tecnologia e humanidade. Será sua disposição de resgatar sua essência, de curar sem adoecer, de liderar sem se afastar de si mesmo.
A medicina do amanhã começa com um olhar honesto para o hoje. Começa com perguntas profundas: por que escolhi esse caminho? Estou alinhado com meu propósito? Quais habilidades preciso desenvolver além do bisturi e do estetoscópio?
Esse novo médico não se forma apenas nas salas de aula. Ele se forma na escuta ativa, na humildade de aprender continuamente, na coragem de mudar de rota e na sabedoria de entender que ajudar vidas é um privilégio — mas não é exclusividade de uma profissão.
O médico do futuro, acima de tudo, será um ser humano pleno.
E é nesse resgate da essência que reencontrará sua verdadeira excelência
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