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Autor: D.G.Jones; R.Gear; K.A.Galvin, Comentado por Márcio Fabri (Prof. Márcio Fabri dos Anjos, Diretor do Instituto de Ética Teológica do Centro Universitário Nossa Senhora Assunção)

Veiculação: Journal of Medical Ethics 2003, 29: p. 343-347


Este estudo mostra a rápida evolução ocorrida nestas últimas décadas no que se refere às questões legais, éticas e médicas na armazenagem e uso de tecidos humanos, centrando-se sobre o destino de material anônimo arquivado. Fazemos aqui uma seleção de tópicos que nos parecem interessantes no texto, deixando detalhes para uma busca pessoal de quem o quiser, no próprio artigo.

O interesse em pesquisas médicas e no ensino acadêmico polarizou por muito tempo a atenção nesta área, deixando, em certo sentido, um vazio ético na obtenção de tecidos e órgãos de cadáveres. Mas nos anos 90 vieram à tona inquéritos envolvendo retenção de tecidos e órgãos em exames post mortem; apareceram também escândalos nos Estados Unidos, envolvendo departamentos de anatomia, bancos de tecidos, empresas de biotecnologias e crematórios. Estes novos fatos recolocam as questões éticas no assunto.

De modo geral, entre os princípios éticos mais invocados nesta área aparecem: o respeito pela pessoa falecida e por seus familiares; o papel do consentimento livre e esclarecido; as diversidades culturais na consideração do cadáver; o aspecto da gratuidade, especialmente através de doação de órgãos e tecidos. O tratamento dado a cadáveres e tecidos afeta particularmente as pessoas vivas, porque evoca as relações simbólicas com as pessoas falecidas, e este parece também um aspecto relevante. Nestes princípios a obtenção de cadáveres, tecidos, órgãos e partes do corpo, encontra já bons critérios para ser conduzida eticamente.

Além das questões éticas da obtenção surge hoje outra interrogação que não pode passar despercebida: a ética sobre o uso de material humano arquivado ao longo de tantos anos, especialmente a partir do final do século 19. De fato, existe hoje um enorme acervo de tal material, além de verdadeiras coleções que foram se constituindo, que têm sido bases para instituições educacionais e de pesquisa. A natureza do material de arquivo remete basicamente a materiais retidos para servirem de futuras referências. A necessidade de estabelecer causas de morte, diagnósticos a serem completados e o acompanhamento da evolução de patologias, são exemplos deste caso. A variedade do arquivo é grande: lâminas histológicas, sangue, órgãos, embriões, fetos e cadáveres de pessoas adultas, entre tantos outros.

A questão do material arquivado se torna quantitativamente maior se forem considerados os arquivos de museus.

Referem os autores que só na Inglaterra, em 1999, uma estimativa apontava para 104.300 órgãos, partes do corpo e fetos ou natimortos, retidos em instituições de exames patológicos post mortem. A estes se somam ainda 480.600 amostras de tecidos armazenadas em museus ou outros tipos de arquivos.

A história dos caminhos éticos e legais para a obtenção destes materiais é, na maioria dos casos, obscura. Um conceito ético chave no caso do material de arquivo é a manutenção de seu anonimato: ou seja, que o material não seja identificado por referência a indivíduos conhecidos. Mas este critério é apenas um critério inicial.

Há problemas éticos na armazenagem destes materiais de arquivo?
Algumas posições dignas de nota:
– Na retenção, uso ou disposição destes materiais sejam consideradas as percepções dos familiares e os valores históricos e educacionais dos tecidos humanos.
– Pesquisa com materiais anônimos e não identificáveis já existentes não deveria ser classificada como pesquisa com seres humanos (National Bioethics Advisory Commission, dos Estados Unidos). Nessa linha, argumenta-se que não se devem sacralizar as amostras, mas distingui-las das pessoas – que merecem proteção de sua autonomia e privacidade. A garantia viria com o anonimato das amostras.

– A pesquisa com material de arquivo é ética mesmo na falta de consentimento dos sujeitos, desde que, entre outras, seja garantido o mais cedo possível o anonimato das pessoas às quais o material se refere, protegendo-as assim de qualquer inconveniente; e que seja obtido o consentimento em casos de dúvida sobre o caráter invasivo da pesquisa (Royal College of Physicians – Reino Unido). Tais provisões não se aplicam ao material totalmente anônimo de arquivos.

O que fazer com os materiais anônimos de arquivo?
Quando se trata de material realmente anônimo de arquivo (não há familiares a serem consultados) e o material está nas mãos de quem legalmente os possui. O que seria melhor fazer segundo o interesse da comunidade humana e respeitando as pessoas de quem os materiais provêm? Há inicialmente quatro opções:

1. Incinerar o material para evitar maus usos e abusos. Esta opção obviamente não considera os bons usos que eventualmente se podem fazer em educação e pesquisa.
2. Acentuar o uso educativo para a manutenção dos tecidos. Entretanto, permanece a questão sobre materiais que não sirvam ou que só remotamente possam servir para estes fins.
3. Considerar seu uso em pesquisas. A justificativa depende do grau de utilidade para a pesquisa, o que varia. De qualquer forma, estão aqui incluídos os casos de retenção de material para inquéritos legais posteriores.
4. Manter o armazenamento com os devidos cuidados e respeito, mesmo que de imediato sejam pequenos seus benefícios, mas considerando possibilidades de futuras evoluções das ciências.
Nenhuma das opções acima aceita que os tecidos humanos possam ser guardados indefinidamente, ou que possam ser utilizados para fins contrários à ética: a questão é o que pode e o que não pode ser feito com tais tecidos.

Consentimento x Propriedade
É praticamente um consenso: a ética no uso de tecidos humanos é presidida pela autonomia dos sujeitos e passa pelo adequado consentimento. Mas na essência do debate sobre a ética do uso de materiais de arquivo está exatamente a ausência do consentimento de um sujeito presente. Na discussão sobre consentimento foi apontada recentemente uma possível ambigüidade: a mistura entre o modelo de consentimento com o modelo de propriedade. Isto se verificaria no caso de parentes, com respeito a um falecido.

Os parentes têm o direito de concordar ou discordar com a invasão do corpo do falecido. Isso, entretanto, difere do consentimento do sujeito e se aproxima do modelo de propriedade. As aplicações desta distinção levariam a dizer que a autonomia exercida pelo consentimento, quando verificado, transferiria dos sujeitos para as instituições (de pesquisa, ensino ou terapia) os direitos de propriedade dos tecidos. As instituições naturalmente se submeteriam ao uso ético de tais direitos. Nenhum interesse de propriedade se sobrepõe eticamente ao consentimento, mas que no caso dos arquivos, está ausente. Assim, valeria o direito de propriedade a ser exercido de modo ético.

Bem próxima de tal posição persiste um problema ético encontrado na obtenção de novos materiais de arquivo, sem o consentimento dos sujeitos; ou um uso ulterior não previsto em um consentimento obtido. Tal ambigüidade ética se torna ainda maior quando se dirige para fins comerciais.

Os autores concluem que “amostras de arquivo deveriam ser tratadas com o mesmo cuidado e respeito como se tivessem sido doadas […]. Isto é possível se as pessoas encarregadas do material agem mais como curadores do que como proprietários, com a responsabilidade pela armazenagem das amostras, por seu uso apropriado, e pela qualidade da pesquisa desenvolvida sobre eles.”

Algumas propostas conclusivas dos autores apontam na seguinte direção: que todas as coleções, mesmo as de museus, sejam gradativamente registradas, autorizadas e de alguma forma monitoradas pela sociedade; que se regule de modo uniforme eliminando distinções entre coleções de patologia e de anatomia, e formando a relação de um arquivo conjunto; forme-se pessoal especializado para a curadoria das coleções; comissões de ética devidamente autorizadas supervisionem o uso ético das coleções.

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