Autor: José Gomes Temporão (Ministro da Saúde)
Veiculação: Revista Supernteressante, edição 240 – Junho 2007
O Ministério da Saúde adverte: aborto é uma questão de saúde pública que precisa ser debatida já; proibir pesquisas com células-tronco provocarão retrocessos no Brasil; há uma incongruência da Igreja Católica na maneira de lidar com esses dois assuntos. O alerta vem diretamente do chefe da pasta, o ministro José Gomes Temporão, que concedeu entrevista exclusiva à SUPER.
Temporão assumiu o cargo em março. Logo atraiu a ira de setores ligados à Igreja Católica – e o apoio de grupos feministas e médicos – ao arejar o tema da descriminalização do aborto. Defensor da tese de que a vida começa com a formação do sistema nervoso central, e não na fecundação, ele vem dizendo que apenas quer “debater o assunto”. “O aborto, hoje, é uma ferida aberta na sociedade brasileira”, diz o médico sanitarista – um especialista em saúde pública, trocando em miúdos.
Para quem começou a conversa se perguntando se ainda teria neurônios, Temporão falou bastan¬te. Discorreu sobre a relação médico-paciente, a necessidade de a biotecnologia não ser assunto exclusivo de cientistas e a maluquice que acredita ser a idéia de legalizar a venda de órgãos. A entrevista foi feita em seu gabinete, em Brasília, ao final do dia em que uma recomendação do ministério ao presidente Lula resultou na quebra de patente do remédio antiaids Efavirenz.
Desde que o senhor assumiu o cargo, o debate sobre a legalização do aborto foi reaceso. Por que esta é uma ques¬tão médica importante?
É importante lembrar o contexto dessa polêmica. Não fui eu que escolhi o tema. O tema é que me escolheu. Isso apare¬ceu no meio de uma entrevista em que me perguntaram qual a minha posição sobre o aborto. Disse que era uma ques¬tão de saúde pública. No ano passado, foram realizadas 220 000 curetagens pós-aborto na rede pública. Estima-se em 1,1 milhão o número de abortos clandestinos por ano no Brasil. Recente¬mente, aconteceram mortes em conse¬qüência de abortos malsucedidos no Rio e em Belém. E, como as classes de me¬nor renda não têm acesso à informação e aos métodos anticoncepcionais, são as mulheres pobres que realizam aborto em condições inseguras. Para as mulhe¬res ricas, o aborto é uma questão que não se coloca. Elas fazem. Em condições seguras. Pagam R$ 2 000, R$ 5 000. As mulheres pobres não. Existe também uma questão de gênero. Eu pergunto: se os homens engravidassem, será que essa questão já teria sido resolvida? Como é que alguns setores têm coragem de di¬zer que essa é uma questão que não pode ser discutida? Não vamos discutir que as pessoas estão morrendo? A realidade está batendo na nossa cara.
O Supremo Tribunal Federal decidirá em breve sobre a legalidade das pes¬quisas com células-tronco. Qual sua posição a respeito?
Se o país proibir, será um retrocesso dra¬mático para a ciência e a pesquisa brasi¬leira. Até porque temos condições de nos colocar na fronteira desse processo – quando se fala em janela de oportuni¬dade, essa é uma das áreas do conheci¬mento em que o Brasil mais poderia avançar. Se proibirmos essas pesquisas, estaremos mais uma vez criando uma grave dependência em relação a outros países. Na prática, o que vai acontecer é que no futuro acabaremos comprando tecnologia desenvolvida lá fora. Além disso, proibir a pesquisa significa privar os brasileiros do acesso a novas tecnologias que podem curar doenças hoje in¬curáveis. A Igreja vai se colocar contra salvar brasileiros que estão morrendo? Mas a Igreja não defende a vida?
Em abril, uma audiência pública sobre a Lei de Biossegurança discutiu qual o momento em que a vida começa. Para você, qual é esse momento?
Não sou especialista, mas a idéia de que a vida começa com o início da formação do sistema nervoso central me parece uma posição bastante defensável e com boa evidência científica. Porque, se não, veja… Um percentual importante dos óvulos fecundados, acima de 30%, é eliminado naturalmente pelo corpo da mulher. Se a vida começa na fecun¬dação, as mulheres assassinam milha¬res de seres humanos naturalmente. Essa é uma questão importante para re¬flexão. Quando há o início da confor¬mação do sistema nervoso, do embrião já consolidado, a coisa ganha outra di¬mensão. Mas, se a discussão vai para o campo religioso, não há o que discutir. Não há consenso, não há ciência, por aí nós nunca vamos resolver o problema. É curioso que a Igreja tenha se colocado contra na aprovação da legislação, mas de maneira mais sutil do que na condenação ao aborto. Não deixa de ser uma contradição – para manter a coerência, ela deveria ser radicalmente contra a pesquisa com embriões.
Se falamos em início, podemos falar em fim. Hoje, predomina o consenso de que a vida termina quando cessa a atividade cerebral. Você concorda?
É razoável defender isso.
Nesse sentido, não faz sentido a socie¬dade brasileira também debater a ortotanásia e a eutanásia?
Faz todo sentido. O debate aqui é muito precário. Tem muito mistério, muito tabu. É uma questão complexa, porque normalmente envolve pacientes em es¬tado muito grave ou terminal, que não podem se manifestar. Quem fala por eles é a família e isso é um complicador. Como introduzir uma discussão racio¬nal em uma situação de absoluta irra¬cionalidade, sofrimento e desespero? Se você se colocar no lugar de um pai, uma mãe que tem um parente nessa si¬tuação, você autorizaria o desligamen¬to dos aparelhos? Ou a indução acele¬rada da morte? Falar da cátedra é fácil. Encarar ali, no concreto, é muito mais complexo. Tanto que essa é uma ques¬tão muito polêmica em todo o mundo.
E do ponto de vista do médico? Que conselho dar ao profissional que só tem como alternativa de tratamento prolongar a agonia do paciente?
É mais complexo ainda. O médico não pode, em hipótese alguma, correr o ris¬co de achar que decide sobre a vida ou a morte. Ele tem de ter muita humildade e, principalmente, compaixão. Reco¬nhecer no outro o que há de humano em si mesmo – todo médico tem a tare¬fa fundamental de perceber no sofri¬mento do paciente a possibilidade de sofrimento dele próprio, ou de um ente querido. Essas situações-limite são pro¬blemas graves, trazem sofrimento para o médico. Muitas vezes, ele se vê sozinho tendo de tomar uma decisão seríssima. Não é à toa que há tantos suicí¬dios entre médicos no Brasil.
Você declarou que há uma epidemia de mortes por álcool no Brasil. Que medi¬das pretende implementar?
Vou dar um número que mostra a di¬mensão do nosso problema. Temos 35 000 mortes por acidente de trânsito por ano. Dessas, 80% de homens e metade de jovens. Pelo menos metade desses acidentes tem álcool envolvido. Recen¬temente, foi publicado um estudo que avaliou as políticas de 30 países em re¬lação ao álcool. Em linhas gerais, a pes¬quisa mostrou que as medidas restriti¬vas são mais eficazes que as educacio¬nais. Eu, particularmente, acho que tem de haver uma conjugação delas. Por isso, o presidente Lula deve assinar em breve um decreto criando uma polí¬tica para essa questão. São diretrizes e estratégias que vão de medidas educa¬tivas e informativas – mobilização, eventos, trabalhos junto a escolas ¬a mudanças na legislação, como regu¬lamentação da propaganda de bebidas e mais restrições à comercialização de bebidas alcoólicas.
A revista The Economist recentemente defendeu a legalização da venda de rins. O argumento era que o dinheiro serviria como estímulo para aumentar a oferta de órgãos para transplantes. Você acha que uma idéia dessas pode¬ria ser implantada no Brasil?
Essa idéia é uma maluquice total. Uma espécie de mercantilização da vida. Acho que o caminho é exatamente o in¬verso. É desenvolver tecnologia e am¬pliar a conscientização dos cidadãos para as políticas de doação voluntária de órgãos. O Brasil é o 2° maior país transplantador do mundo, mas nossa capacidade de captação ainda é baixa. Foram 15 000 órgãos transplantados no ano passado, mas só a fila de fígado, por exemplo, tem 6 000 pessoas.
A biotecnologia é capaz de promover o bem e o mal. Promete curar o Alzhei¬mer, mas também permite selecionar características genéticas.
Ou então vem com propostas de que, no futuro, haverá seres humanos forne¬cedores de órgãos para transplantes. Ou seres híbridos, entre animais e ho¬mens, cuja função seria criar fígados ou rins. Aí estamos entrando em um limite tênue, que envolve questões éticas, mo¬rais, complexas e perigosas. É por isso que esse assunto não pode ser domina¬do apenas pelos cientistas. Cabe à so¬ciedade controlar e fiscalizar.
Em seu livro Nosso Futuro Pós-Moder¬no, o ensaísta Francis Fukuyama defende a criação de algo parecido com uma agência reguladora para contro¬lar a utilização dos meios biotecnoló¬gicos. a que acha disso?
E quem regularia os reguladores? E se, de repente, você cai em um sistema au¬tocrático que domina a sociedade atra¬vés de uma política fascista? É uma questão pra lá de complicada.