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Autor: Membros do Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Veiculação: Rev. Assoc. Med. Bras. [online]. 2006, vol. 52, no. 3 [citado 2006-11-14], pp. 148-152.


RESUMO

OBJETIVO: Existem inúmeras questões éticas relacionadas ao atendimento médico de pacientes com doença de Alzheimer (DA), como a revelação do diagnóstico ao paciente, a realização de necrópsia para confirmação diagnóstica, além de aspectos relacionados aos cuidadores desses pacientes, submetidos a estresse físico e mental constantes. O presente trabalho buscou investigar estes temas comparando cuidadores familiares de pacientes com DA acompanhados em serviço público e privado.
MÉTODOS: Vinte cuidadores familiares de pacientes com DA acompanhados em hospital universitário público e 20 cuidadores familiares de pacientes acompanhados em clínica privada foram entrevistados por meio de questionário específico que consistia em 36 questões sobre diagnóstico, tratamento e prognóstico da doença.
RESULTADOS: Os dois grupos apresentaram distribuição similar por gênero e idade; o nível socioeconômico dos indivíduos acompanhados em clínica privada foi superior. Não foi observada diferença significativa de opiniões entre os grupos sobre a revelação ou não do diagnóstico de DA aos pacientes, com 42,5% do total de entrevistados se dizendo favoráveis à informação apenas da família. O número de cuidadores favoráveis à realização de necrópsia foi significativamente maior entre o grupo acompanhado em serviço público (35% contra 30% no serviço privado). Vinte cuidadores entrevistados (50% do total) manifestaram, de forma espontânea, o desejo de que fosse realizado exame necroscópico com finalidade de pesquisa científica.
CONCLUSÃO: A revelação diagnóstica da DA aos pacientes foi apoiada por mais da metade dos entrevistados, sem relação com nível socioeconômico. Esta variável, no entanto, influenciou a taxa de concordância quanto à realização de exame neuropatológico post-mortem.

Unitermos: Demência. Doença de Alzheimer. Temas bioéticos. Cuidadores. Necrópsia.

INTRODUÇÃO

O envelhecimento da população mundial, inclusive da brasileira1, implica em maior incidência de doenças crônico-degenerativas causadoras de demência, entre as quais destaca-se a doença de Alzheimer (DA)2. A DA é a causa mais comum de demência em idosos, acometendo de 1% a pouco mais de 6% da população a partir dos 65 anos e atingindo valores de prevalência superiores a 50% em indivíduos com 95 anos ou mais3. No Brasil, os dados epidemiológicos são semelhantes. Em pesquisa feita em Catanduva (SP), 7,1% das pessoas com 65 anos ou mais apresentavam demência, sendo que DA foi diagnosticada em 55,1% desses casos4.

O diagnóstico definitivo da DA depende de exame anatomopatológico de tecido cerebral obtido em biópsia ou necrópsia. A despeito dessa limitação, a segurança do diagnóstico clínico é elevada, não havendo, portanto, indicação de biópsia cerebral com esta finalidade. A DA tem curso lentamente progressivo, com duração média de oito anos entre o início dos sintomas e o óbito. Paralelamente às alterações cognitivas características da doença, transtornos de comportamento são comuns, sobretudo nas fases mais avançadas, representando significativo fator de estresse para os familiares e cuidadores5.

Há diversos aspectos éticos relacionados ao acompanhamento de pacientes com DA, como a questão da informação do diagnóstico provável ao paciente6 ou a autorização para a realização de necrópsia com intuito de confirmação diagnóstica ou com finalidade de pesquisa. Além disso, os cuidadores familiares de pacientes com diagnóstico da doença padecem de importante sobrecarga física e psíquica que, não raro, levam a uma má qualidade de vida desses indivíduos7.

No Brasil, há muito poucos estudos sobre essas questões. O presente trabalho teve como objetivo investigar, por meio de questionário específico, as opiniões de 40 familiares cuidadores sobre aspectos relacionados ao diagnóstico e prognóstico destes pacientes.

MÉTODOS

Foram entrevistados 40 familiares cuidadores de pacientes com diagnóstico de DA provável segundo os critérios do NINCDS-ADRDA8. Todos os pacientes tinham diagnóstico de demência moderada ou grave, conforme critérios estabelecidos pelo DSM III-R,9 e eram acompanhados por membros do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), seja em ambulatório deste hospital, seja em clínica privada também na cidade de São Paulo.

Os cuidadores entrevistados foram escolhidos aleatoriamente segundo a sua presença casual nos serviços de atendimento nos dias em que a equipe pesquisadora estava disponível para coleta dos dados. Não se buscou nenhum tipo de pareamento dos cuidadores com a seguinte exceção: foram convidados a participar da pesquisa 20 cuidadores de pacientes atendidos no serviço público (HC-FMUSP) e 20 cuidadores atendidos em clínica privada (consultório particular). Todos os convidados aceitaram participar do projeto.

Os participantes preencheram o termo de consentimento esclarecido previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HC-FMUSP e responderam às perguntas uma única vez, sem conhecimento prévio das mesmas. O questionário foi aplicado sob forma de entrevista semi-estruturada com duração média de 20 minutos, embora não houvesse qualquer limitação de tempo para as respostas. Tal questionário foi especificamente elaborado para a pesquisa, consistindo em 36 questões que abordavam os seguintes tópicos (Anexo 1): características sociodemográficas principais, nível socioeconômico (dividido em seis níveis, conforme avaliação por meio de escala específica10), impacto na vida dos cuidadores do ponto de vista material e emocional (algumas perguntas inspiradas em um questionário de sobrecarga de cuidadores, o Zarit Burden Interview11), conhecimento sobre a doença (diagnóstico, tratamento e prognóstico), além de outros temas não relevantes ao presente trabalho.

Para avaliação estatística da amostra de cuidadores, analisou-se separadamente o grupo de cuidadores de pacientes atendidos no HC-FMUSP e os cuidadores de pacientes atendidos em clínica privada. Foi utilizado o programa estatístico MedCalc versão 7.2.1.0 para Windows e os testes de Kolmogorov-Smirnov, de studant T e Qui-quadrado. O teste de Kolmogorov-Smirnov definiu distribuição normal para a variável idade nas duas amostras, permitindo o uso do teste T para a comparação entre os dois grupos. Nas comparações entre as demais variáveis dos dois grupos de cuidadores, foi empregado o teste de Qui-quadrado.

RESULTADOS

A média de idade dos cuidadores do HC-FMUSP foi de 58,3 anos e a dos cuidadores atendidos em clínica privada, de 55,4 anos. Não foi constatada diferença significativa em relação à idade nas duas amostras (p=0,09).

Em relação à distribuição por gênero, no HC-FMUSP cinco (25%) dos cuidadores eram homens e 15 (75%) mulheres, enquanto na clínica privada, sete (35%) eram homens e 13 (65%) mulheres. Não foram observadas diferenças significativas entre estes valores (p=0,73). Da mesma forma, não foram encontradas diferenças entre os dois grupos quanto à escolaridade (p=0,43), embora apresentassem diferenças significativas em relação ao nível socioeconômico (p=0,0001).

Considerando-se os dois grupos em conjunto, 16 cuidadores (40%) eram cônjuges do(a) paciente, 17 (42,5%) eram filhos, seis (15%) eram irmãs e havia um (2,5%) cuidador que era sobrinho do paciente.

O tempo de cuidado (número de anos em que vinham se dedicando ao paciente) não foi diferente entre os cuidadores do HC-FMUSP e da clínica privada (p=0,52), bem como não foram observadas diferenças entre os dois grupos em relação ao conhecimento sobre a evolução (caráter progressivo) da doença (p=0,46). No entanto, nove (22,5%) dos 40 cuidadores acreditavam que o curso natural da doença poderia se estabilizar.

Não houve diferenças significativas entre os dois grupos de cuidadores quanto às opiniões sobre a revelação ou não do diagnóstico de DA ao paciente nas fases iniciais, em que ele ainda é capaz de compreender o seu significado (p=0,10). Dezessete cuidadores (42,5% do total) declararam que o paciente deve saber de seu diagnóstico provável de DA desde o início, enquanto 19 (47,5%) responderam que somente os familiares devem receber esta informação. Quatro deles (10%) responderam que essa decisão deve ser tomada de forma individual, dependendo do paciente e da família.

Os dois grupos tiveram posições discretamente diferentes quanto à realização ou não de necrópsia para confirmação do diagnóstico de DA (p=0,03). Os mais favoráveis ao estudo anatomopatológico foram os cuidadores de pacientes acompanhados no serviço público (35% contra 30% no serviço privado). Mesmo sabendo que o diagnóstico definido de DA só é possível ao exame neuropatológico, 14 cuidadores (35% do total) achavam desnecessária a confirmação diagnóstica por meio de necrópsia. Os outros 26 (65%) se declararam favoráveis à realização do exame, embora para 20 (50%) deles apenas com finalidade de pesquisa científica. Esta última observação foi feita de forma espontânea em todos os casos. Nenhum cuidador do serviço privado manifestou-se favorável à realização de necrópsia que não com finalidade de pesquisa.

Em relação aos fatores de estresse físico e psíquico no cuidado dos pacientes, 33 cuidadores (82,5% do total) afirmaram que não houve necessidade de fazer mudanças na casa por causa do agravamento do estado do familiar doente. Os outros sete (17,5%) referiram mudanças, como adaptações de banheiros e/ou quartos ou até mesmo mudança de casa em um caso. Quatorze (35%) dos entrevistados necessitaram contratar uma pessoa para ajudar no cuidado ao paciente, nove (22,5%) contrataram duas pessoas com esta finalidade; um (2,5%) contratou três pessoas. Dos que contrataram pelo menos um cuidador formal, vale ressaltar que dez (25%) eram do HC e 14 (35%) do consultório. Dezoito (45%) pacientes eram totalmente dependentes para as atividades básicas de vida diária (vestir-se, alimentar-se, higiene pessoal), exigindo atenção constante.

DISCUSSÃO

No presente estudo, foram avaliadas questões relacionadas ao conhecimento da DA por parte de cuidadores familiares, sendo possível inferir que os entrevistados possuem bom conhecimento sobre o diagnóstico e o prognóstico da doença. Estes esclarecimentos são fornecidos aos familiares durante as consultas médicas e também por meio de materiais informativos impressos, além do crescente uso da internet com esta finalidade. No caso do HC-FMUSP, os cuidadores também têm oportunidade de participar de reuniões a respeito da doença e de suas implicações. É importante ressaltar que o estudo foi desenvolvido na cidade de São Paulo e que pode não ser representativo do que ocorre em outras regiões do país.

A questão de revelar ou não o diagnóstico ao paciente desde o início de sua doença mostrou-se controversa, dependendo de aspectos e decisões individuais de acordo com cada situação. Entretanto, os dados obtidos, em que 42,5% do total de cuidadores consideraram que o paciente deve saber do diagnóstico, embora ainda representando minoria, vão aparentemente em direção oposta à prática profissional vigente em nosso país. Apesar de não dispormos de dados nacionais precisos sobre esta questão, no contato com colegas profissionais médicos que atendem pacientes com DA, a grande maioria refere revelar o diagnóstico apenas aos familiares, mencionando que tal conduta é muitas vezes solicitada pela própria família. É possível que esta posição não tenha sido identificada pelo questionário aplicado pelo fato de deixar claro que o entrevistador queria saber qual era a opinião do entrevistado de um modo geral, não necessariamente a conduta a ser aplicada no caso de seu familiar.

Um estudo prospectivo recente realizado no Reino Unido concluiu que 92% de um grupo de pacientes com demência moderada gostariam de ser informados do diagnóstico e que apenas 26% dos cuidadores familiares não gostariam que o médico revelasse o diagnóstico de demência ao paciente, valor este mais baixo que o observado no presente estudo. Entretanto, 98% destes cuidadores gostariam igualmente de receber o diagnóstico caso eles mesmos tivessem demência12. Disparidade semelhante foi observada em outro estudo, realizado nos Estados Unidos, em que cerca de 80% dos idosos de uma determinada comunidade gostariam de saber de seu diagnóstico hipotético de DA, enquanto apenas 65% gostariam que o diagnóstico fosse revelado ao cônjuge no caso deste ter a doença, demonstrando uma atitude protecionista em relação ao familiar, mas de domínio da situação no caso próprio, atitude esta observada também em nosso meio13.

Em relação à necrópsia, a grande maioria dos entrevistados a relacionou com objetivos de pesquisa científica e não unicamente para confirmação diagnóstica. A experiência de convívio com a doença em um familiar obviamente aumenta o interesse para que o conhecimento sobre ela se desenvolva, mas as doações voluntárias do tecido cerebral para pesquisa só crescem se os familiares e os doentes são informados das vantagens dessa atitude, segundo uma experiência norte-americana14. Os entrevistados vêem vantagens em realizar a necrópsia com a finalidade de pesquisa, ainda que nem todos os que deram resposta positiva fossem permitir este procedimento no caso de seus familiares. Tal atitude poderia ser modificada, como sugere um estudo britânico15, caso houvesse mais diálogo sobre a perspectiva da morte e sua preparação dentro do núcleo familiar. Dessa forma, em relação à necrópsia, assim como no caso da revelação do diagnóstico, os resultados obtidos por este estudo podem apresentar um viés, embora não deixe de ser relevante o desejo manifesto espontaneamente pelos familiares para que se incrementem as pesquisas na área e que não apenas se utilize o exame post-mortem com finalidade de confirmação diagnóstica.

CONCLUSÃO

A população idosa no Brasil tem aumentado consideravelmente, de modo que se torna necessário haver mais pesquisas sobre as principais doenças dessa faixa etária, entre as quais se incluem as doenças degenerativas como a DA. Será cada vez mais freqüente para os profissionais de saúde deparar-se com dilemas em torno do diagnóstico de condições incapacitantes como a demência. Os estudos estrangeiros são de grande valia, no entanto, é fundamental que haja estudos nacionais, uma vez que tais questionamentos têm estreita relação com a cultura de cada povo.

AGRADECIMENTO

Ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo, pela concessão de bolsa de estudos à Luciana Pricoli Vilela (programa de apoio à iniciação científica na área de pesquisa em Ética Médica).

Conflito de interesse: não há

(Artigo na íntegra no site da amb – Associação Médica Brasileira)

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