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Autor: Millan (psiquiatra, psicanalista e autor  do livro Vocação Médica e Gênero)

Veiculação: Revista Ser Médico Edição 36 – Julho/Agosto/Setembro de 2006


O estudo da vocação médica abrange desde a história da profissão, até a personalidade do profissional, com seus aspectos conscientes e inconscientes, variáveis como a família, a origem, a raça e a classe social, além do perfil econômico. O maior obstáculo para a sua realização é a inexistência de um instrumento capaz de abranger todos esses aspectos e, tampouco, de algum que possa detectar, especificamente, a vocação médica. Além disso, é possível que o conceito de vocação médica seja tão abstrato que comprometa sua expressão –  ou seja, estaria incluído na categoria dos conceitos inefáveis, assim como acontece com os sentimentos, dos quais todos sabem o significado, mas ninguém é capaz de defini-los, contentando-se em descrever as situações em que se tornam presentes.   

E por que estudar vocação e gênero seria interessante? Desde a Grécia Antiga proibiu-se a presença de mulheres na profissão, com raras exceções.  No século XIX uma mulher surpreendeu a todos ao dar um exemplo de vocação médica: simulou ser homem para ser admitida como cirurgiã no exército britânico e só teve a verdadeira identidade revelada após sua morte, depois de ter realizado uma carreira de sucesso!   

Com o intuito de estudar a vocação médica e sua relação com o gênero, realizamos uma pesquisa com estudantes do primeiro ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). A grande dificuldade que enfrentaram para ser aprovados no vestibular, demonstra, a princípio, a existência de uma forte determinação para estudar Medicina. Evidentemente, tal determinação não garante que todos sejam possuidores de vocação médica. Além disso, por estarem no início do curso, esses alunos ainda não haviam sido influenciados pela faculdade e, por isso, o aspecto vocacional “puro” poderia ser observado com maior clareza.   

No estudo foram utilizados quatro diferentes instrumentos de pesquisa, aplicados em 30 alunos e em 30 alunas da FMUSP, com idade entre 17 e 21 anos. Optou-se por uma metodologia mista, quantitativa e qualitativa, o que possibilitou observar a questão vocacional por diferentes ângulos e a realização de um estudo de gênero. Inicialmente, aplicou-se um questionário socioeconômico, seguido de entrevista sobre a escolha da profissão e de um teste de personalidade (16 PF). E, no final, um teste projetivo capaz  de detectar aspectos inconscientes que poderiam estar ligados à escolha da profissão (TAT – Teste de Apercepção Temática).   

A média de idade foi em 18,5 anos, todos brasileiros e solteiros, predominando os nascidos em São Paulo (capital), de religião católica. Chama a atenção o fato de que 32% dos alunos declararam-se ateus. A maioria dos pais e mães desses alunos possui curso superior e pertence à classe média. Apenas um dos pesquisados cursou o segundo grau em escola pública. Aproximadamente 63% dos alunos têm algum médico na família, apenas 27% conseguiram passar no vestibular em sua primeira tentativa e poucos (5%) iniciaram, antes disso, um outro curso superior.  

Em geral, alunos de ambos os gêneros optam pela Medicina precocemente, enquanto que um número maior de alunos do gênero masculino identificou-se com alguém para a escolha da profissão. Quanto às motivações conscientes para a escolha da profissão, alunos e alunas destacaram o altruísmo, a curiosidade intelectual, o interesse pela relação humana e o perfil da profissão. A maioria procurou obter informações sobre o curso médico antes do vestibular, enquanto que 1/3 foi desencorajado a estudar Medicina por familiares ou amigos, mas não desistiram. Embora apenas 10% possuam uma imagem inteiramente favorável da profissão e acreditem que terão a vida privada afetada pelo cotidiano profissional, em geral, as expectativas são otimistas.  

Também acham que, durante o curso, terão dificuldades quanto à falta de tempo, à relação médico-paciente, ao excesso de matérias, ao estudo, ao estresse e ao exame de residência. Para eles o bom médico deve ser altruísta em primeiro lugar. Além de humano, esforçado, responsável, humilde, calmo e honesto, também deve ser habilitado tecnicamente, ter boa relação com o paciente e gostar da profissão.

O teste projetivo mostrou que alunos de ambos os gêneros são altruístas, possuem bom contato com a realidade, estão elaborando as perdas inerentes à adolescência, têm uma expectativa ligada principalmente à realização profissional e ao reconhecimento pessoal, são perseverantes e possuem um superego tenaz. Alunos do gênero feminino possuem maior maturidade emocional e boa capacidade de insight, buscam corresponder às expectativas parentais, possuem grande necessidade de serem amadas e apresentam uma leve tendência a quadros depressivos. Por sua vez, alunos do gênero masculino apresentam maior dificuldade em lidar com o seu mundo mental, principalmente com impulsos agressivos, que são mais intensos, possuem grande necessidade de diferenciação do pai, são mais competitivos e ambiciosos, porém inseguros quanto à própria capacidade.   

O teste de personalidade mostrou que as alunas tendem a ser mais sensíveis, delicadas e empáticas, enquanto os alunos são mais práticos, independentes, objetivos e criativos. Porém, quando se leva em conta todos os fatores de personalidade estudados, não há diferença entre os dois grupos.  Os dois grupos estudados apresentaram poucas diferenças e demonstraram que possuem uma verdadeira predisposição altruísta hipocrática, que os levou à escolha da profissão médica.   

Conclui-se, finalmente, que a vocação médica transcende o gênero. No início do século XXI, quando as atenções estão dirigidas cada vez mais para os avanços tecnológicos da Medicina, ficando os aspectos humanísticos em segundo plano, torna-se premente dar continuidade ao estudo da vocação médica. Como perspectiva, seria interessante realizar estudos comparativos em diferentes escolas médicas, com alunos de outras áreas e, também, com vestibulandos.  

Mulheres na Medicina

Médicas engravidam tardiamente e têm menor número de filhos do que o restante da população, participam menos da vida acadêmica e de publicações científicas  

Até o século XIX, as mulheres eram consideradas incapazes para o exercício da profissão médica, possivelmente por suas características de personalidade, consideradas frágeis para essa função. Ainda no final do século XIX, começaram a surgir faculdades de Medicina exclusivas para mulheres. Segregadas, era como se não existissem…

O preconceito em relação a elas era tanto que para ter chance de concorrer a prêmios científicos, enviavam trabalhos com pseudônimos masculinos porque as sociedades médicas não as aceitavam. Além disso, as cátedras das universidades eram ocupadas exclusivamente por homens, médicas não eram admitidas nos bons hospitais e tampouco em especialidades como cirurgia, ortopedia e urologia entre outras.   

Foi apenas a partir da segunda metade do século XX que, gradativamente, as mulheres tornaram-se mais presentes na Medicina. Porém, apesar de apresentarem desempenho acadêmico tão bom quanto os homens, continuam a ser alvo de preconceito até os dias de hoje. A leitura de extensa bibliografia para elaborar a tese sobre a vocação médica, permitiu conhecer um pouco sobre as condições em que as mulheres exercem a Medicina. Felizmente, não foi mais preciso chamar a polícia para que pudessem assistir às aulas, mas são boicotadas em muitas especialidades, ganham menos do que seus colegas homens e raramente exercem funções de destaque no mundo acadêmico.

Para piorar, não é raro que sejam vistas com maior desconfiança pelos pacientes quando exercem determinadas especialidades, como a cirurgia. Sobrecarregadas, engravidam tardiamente e têm menor número de filhos do que o restante da população, participam menos da vida acadêmica e de publicações científicas, recebem menos apoio de seus superiores e progridem, diante disso tudo, mais lentamente na profissão. É interessante observar que, enquanto em outras áreas já se discute o impacto que as conquistas das mulheres provocaram na população masculina, há, ainda, na profissão médica, uma grande resistência para aceitar as mulheres, sem discriminá-las.

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