Autor: Rosangela Silva

Veiculação: Revista Ser Médico Edição 37 – Outubro/Novembro/Dezembro de 2006


antos, cidade turística, com praia e porto. “Crianças são abordadas na rua por pessoas que, do interior de um automóvel, oferecem 50 reais por uma ‘transa’, 10 ou 20 reais por sexo oral. É assim que elas começam a ser exploradas sexualmente”, diz a psicóloga Lumena Celi Teixeira, coordenadora de projetos da ONG santista Centro Câmara de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência. “As meninas maiores contam que vários ‘clientes’ pedem que tragam uma coleguinha de 9 ou 10 anos”, completa a psicóloga. Uma análise feita pelo Disque Denúncia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes entre fevereiro e setembro de 2005, fornece mais dados sobre o perfil das vítimas: 62% são do sexo feminino e 56,5% envolvem crianças de 0 a 6 anos.  

Problema que acontece em escala mundial, a exploração sexual infantil está associada à desigualdade social, falta de escolaridade e violência intra-familiar, entre outros fatores. Para Lumena, a erotização precoce observada na música e em outras expressões culturais do Brasil são agravantes consideráveis. Ela destaca que a mídia nacional apresenta, com freqüência, meninas de 13 ou 14 anos como “modelos profissionais” ou “símbolo sexuais”.

Dos 60 milhões de crianças e adolescentes do país, as que vivem em situação de rua ou sem o cuidado integral de pais ou responsáveis são mais vulneráveis à exploração sexual, que pode significar uma possibilidade de ascensão, quando não a única fonte de recurso para se alimentar. “Porém, uma parcela não está na faixa de exclusão mas quer um tênis novo de marca ou um celular ‘da onda’”, revela Cristina Albuquerque, coordenadora do Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.  

A falta de maturidade para o senso crítico favorece a sedução. “Mas, emocionalmente a vítima sofre um grande trauma que só será percebido depois”, diz a psicóloga Ângela dos Santos, coordenadora do Centro de Atendimento à Família da Fundação Criança de São Bernardo do Campo, entidade que desenvolve trabalhos com a vítima, por meio de programas de reinserção familiar e escolar, além de capacitação para o ingresso no mercado de trabalho.  

“Ouvi depoimentos de crianças que tiveram coragem de se expor para denunciar uma situação tão delicada e revoltante. Meninas são contagiadas pela Aids ou ficam grávidas com 13, 14 anos porque foram proibidas de usar preservativos pelos ‘clientes’. Outras são viciadas em drogas ou álcool porque foram estimuladas ou obrigadas ao consumo para ficar descontraídas, sentir menos dor ou vencer a vergonha”, afirma a senadora Patrícia Saboya (PSB-CE) que presidiu a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Exploração Sexual no Congresso Nacional. Entre 2003 e 2004, os integrantes da CPMI analisaram quase dois mil documentos e denúncias sobre o assunto, além de visitar 22 Estados brasileiros.

“No relatório final, pedimos o indiciamento de mais de 200 pessoas, entre políticos, magistrados, empresários, esportistas, líderes religiosos e policiais”, revela a senadora. A CPMI também identificou a exploração de crianças organizada em rede no país. “No Rio de Janeiro existiam faixas em determinado bairro oferecendo meninas menores a R$ 1,99. No Vale do Jequitinhonha (MG) meninas subiam em boléias de caminhões para fazer sexo por 50 centavos”, completa ela.

Além das seqüelas físicas, a violência compromete a sexualidade e a afetividade das crianças. Segundo a psicóloga Lumena Teixeira, elas sofrem a descaracterização do referencial adulto após estabelecer uma relação de uso e troca com eles. Dificilmente verão no adulto uma pessoa capaz de relacionamentos transparentes e verdadeiros.  

O programa da Fundação Criança de São Bernardo do Campo tem uma rede estruturada de atenção aos casos de exploração sexual ou de trabalho infantil em faróis. As crianças permanecem em abrigos enquanto uma equipe de assistência social procura restabelecer seus vínculos familiares. Quando isso não é possível, a criança fica no local até os 18 anos. “Às vezes a família conhece o problema, mas não consegue reverter a situação por desorganização da dinâmica familiar ou pela fragilidade do diálogo”, diz Ângela.

Resgatar a dignidade das vítimas é uma tarefa difícil e demorada. “Algumas meninas começam o processo psicoterapêutico de apoio, mas não resistem. É um trabalho que demanda tempo, de idas e vindas, de recaídas. Devemos ter paciência para esperar resultados efetivos”, declara Ângela. “Além disso, parte das crianças resiste a ter uma vida diferente. A liberdade, a falta de regras e limites são sedutores, principalmente ao adolescente em fase de descoberta e aventuras. Para um adolescente que passa longos períodos em boates, o abrigo foge completamente à realidade que estava vivendo”, completa.

Para Lumena Teixeira, “a visão moralista e machista que deixa a menina em situação de culpa, como se tivesse feito uma opção na vida”, prejudica a reinserção social e familiar. A senadora Patrícia Saboya destaca que o Brasil carece de políticas que previnam a cooptação e sedução de crianças por indivíduos ou rede criminosa. “Eles são mais ágeis que o governo e têm mais dinheiro para financiar sonhos e desejos de crianças”, diz.  

A visibilidade dos casos punidos pela Justiça contribui para mudar a mentalidade do brasileiro em relação ao assunto. Mas o processo precisa de “empurrões” num país em que há pouco mais de um século os senhores da casa grande nem consideravam seres humanos as crianças da senzala. “É preciso despertar a consciência de que a demanda é criada pelo explorador e não pelo explorado; além disso, é dever do adulto proteger seu filho e o do outro”, reforça Cristina Albuquerque. Ela fez questão de citar o artigo 227 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “é dever de todos, da família, da comunidade e do Estado colocar a criança a salvo de qualquer tipo de constrangimento, de violência, de discriminação, garantindo-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”.  

A prática de sexo com menores de 14 anos é considerada estupro ou atentado violento ao pudor pelo Código Penal brasileiro, com pena de 6 a 10 anos de prisão. Sexo vaginal com meninas de 14 a 18 anos é “sedução de menores”, com penalidade que pode variar de 2 a 4 anos de prisão. Já a prática de sexo oral ou anal com meninos enquadra-se em corrupção de menores, cuja pena de prisão pode variar de 1 a 4 anos. A CPMI do Congresso propôs mudanças na legislação e penas mais rigorosas, além de sugerir a criação da nomeclatura penal “estupro de vulnerável” para a prática de sexo com menores de 14 anos ou portadores de doença ou deficência que impeçam resistência física ou discernimento para o ato, com pena de 8 a 15 anos de prisão. Outra sugestão é a caracacterização de “crimes contra a liberdade e o desenvolvimento sexual”, cujos atos hoje são enquadrados em “crimes contra os costumes”. Aprovadas há mais de um ano no Senado, as propostas esperam votação na Câmara dos Deputados.

O Ministério da Saúde determina aos profissionais da área da Saúde e médicos que atendam crianças e adolescentes menores de 18 anos, em caso de suspeita ou confirmação de abuso sexual, a comunicação obrigatória ao Conselho Tutelar ou à Vara da Infância e da Juventude.

Distrito Federal registra a maior média de denúncias

Levantamento do Disque Denúncia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes registrou um total de 18.195 denúncias entre 2003 e 2006. Por concentração demográfica, o Distrito Federal apresentou a maior média, 20,87 denúncias para cada cem mil habitantes. São Paulo ficou na última posição, com média de 5,65.  

Um mapeamento nacional, coordenado pela SEDH-PR em conjunto com o Grupo de Pesquisa do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), realizado entre 2002 e 2004, identificou casos em 927 dos 5.507 municípios brasileiros. O Estado de São Paulo aparece em primeiro lugar do ranking, registrando casos em 93 de seus 645 municípios, seguido de Minas Gerais com 92 dos 853 municípios. Pernambuco aparece em terceiro, com 63 do total de 185 municípios.

O ranking não considera as populações estaduais: São Paulo tem 40,4; Minas, 19,2 e Pernambuco, 8,4 milhões de habitantes. Por região, a primeira posição ficou com o nordeste, seguido pelo sudeste, sul, centro-oeste e norte.

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