Por Roberto Magliano de Morais, presidente do Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB)

Diz-se que para os sábios, os momentos de dificuldade, de grande sofrimento e dor, são os de maior crescimento e aprendizado, pois são os erros e as derrotas que ensinam. Os momentos de sucesso e de vitória devem ser aproveitados, sobretudo quando são consequência do nosso esforço, mas pouco se aprende com eles.

Com toda essa preocupante situação de ameaça global, vale refletir em cima da imensa e dolorosa experiência de dor e sofrimento, que em maior ou menor grau, aflige atualmente a humanidade.

Cabe esclarecer que este é apenas o início de uma longa caminhada, e espera-se seja superada com sabedoria, mesmo sabendo que as perdas serão numerosas. E nesta jornada, convido a analisar alguns pontos de quem já foi acometido pela doença, e sobreviveu para contar um pouco da sua experiência, e da sua visão do problema.

O primeiro ponto seria a nossa incúria, a nossa imprevidência. A fábula da cigarra, que passou o verão cantando, enquanto a formiga juntava seus grãos e a moral da história, todos conhecem, mas vou repetir: “Os que não pensam no dia de amanhã, pagam sempre um alto preço por sua imprevidência”.

Em artigo publicado no jornal o Estado de São Paulo, diz Fernando Gabeira: “de certa forma, uma epidemia como esta já estava prevista pelos estudiosos. O que não estava ainda em nosso radar era o impacto da ignorância humana em aceitá-la para realizar o combate central contra ela”.

Os grandes líderes mundiais parecem não ter enxergado a magnitude da ameaça e, numa atitude um tanto leniente, um tanto prepotente, “pagaram pra ver”, e quando foram tomar providências, já era tarde.

Há algumas semanas, Boris Johnson, o primeiro ministro do Reino Unido, advogava a favor da “estratégia da imunidade de rebanho”. Permitir a livre circulação da população para que boa parte dela contraísse a doença e desenvolvesse uma imunidade natural.

Mais tarde, demonstrou-se que seguir essa estratégia causaria a morte de meio milhão de britânicos. Nesse momento Boris Jonhson está infectado pelo coronavírus, e o país está passando com uma quarentena obrigatória.

Outros exemplos notáveis e igualmente emblemáticos são o da Itália, que parece ter demorado para entender o que acontecia, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, incentivou as pessoas a saírem para comer, a seguirem suas vidas normalmente. O nosso próprio Presidente insiste na mesma linha. A irresponsabilidade dessas pessoas pode ser devastadora a curto e a longo prazo. Outro ponto que merece discussão é de ordem psicológica. A negação da pandemia. E ela não se dá exclusivamente na esfera política. O mais grave, talvez, seja ver como muitas pessoas rompem o confinamento e desafiam as medidas impostas.

Além disso, as imagens divulgadas a cada dia mostrando o colapso de hospitais, o número de infectados e de mortes crescendo a cada hora, deixam alguns desesperados mas outros estranhamente(?) indiferentes.

O que explica esse fenômeno de negação da pandemia? Por um lado, há pessoas que priorizam o seu bem estar acima de tudo. Não estão dispostas a mudar seu estilo de vida por um bem maior. Muitos assumem o coronavírus como uma simples gripe ou acreditam que quase nada sofrerão caso sejam infectados. Minimizam e eliminam a relevância do perigo de transmitir para outras pessoas, de sofrer uma doença que se agrave ou de serem responsáveis pela perda de vidas humanas.

Nessa categoria incluem-se os que não se dispõem a parar a economia. Muitas deles, no Brasil talvez a imensa maioria dos trabalhadores informais, precisam realmente trabalhar para sobreviver. Esses dão por certo o impacto que a quarentena terá em um país, tratando os efeitos econômicos como piores do que as consequências para a sua própria saúde.

A negação da pandemia também pode ser explicada por uma dimensão curiosa mas muito presente no ser humano, o efeito da irrealidade. Todos os dias, quando nos levantamos, vemos o sol saindo, nos conectamos pelo telefone celular, apertamos as mãos e abraçamos familiares e pessoas que amamos. Como acreditar que há um vírus altamente infeccioso solto pelas ruas matando tanta gente?

Em psicologia esse fenômeno é definido como um mecanismo de defesa pelo qual a pessoa, inconscientemente, não quer tomar conhecimento de algum desejo, fantasia, pensamento ou sentimento.

A teoria da negação foi pesquisada seriamente por Anna Freud que a classifica como um mecanismo da mente imatura porque entra em conflito com a capacidade de aprender e lidar com a realidade.

Consoante a wikipedia, muitos psicanalistas contemporâneos tratam a negação “como o primeiro estágio de um ciclo de enfrentamento quando ocorre uma mudança indesejada, um trauma de algum tipo. Essa negação, em uma mente saudável, se eleva lentamente tornando-se uma pressão subconsciente, logo abaixo da superfície da consciência aberta. O mecanismo de enfrentamento envolve então a repressão, enquanto a pessoa acumula os recursos emocionais para enfrentar completamente o trauma”.

Posso dar a minha experiência pessoal. Há exatos 20 dias, enxergava a pandemia como uma ameaça que não me atingiria, até que fui acometido fortemente e, simultaneamente, um verdadeiro “tsunami” de notícias deram conta de que ela já estava em nosso meio, e que precisávamos com urgência, agora não mais nos preparar para ela, mas encarar, enfrentar, um inimigo desconhecido e perigoso.

Perdemos precioso tempo sem nos preparar nem planejar. Como toda análise retrospectiva é mais fácil, sabe-se agora, que ao invés de festas de fim de ano e de carnaval, dever-se-ia, já naqueles momentos, estar em alerta máximo, a providenciar testes diagnósticos, aparelhos respiradores, leitos de UTI e equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde. Por negação e leniência, perdeu-se a janela de oportunidades!

Será que os nossos líderes serão perdoados por esta grave falta? Do meu ponto de vista, somos todos seres humanos e como tais suscetíveis a idiossincrasias, aqui incluindo o fenômeno da negação. Não se pode todavia, aceitar que estes mesmos gestores e políticos se utilizem destes fatos para proselitismo e promoção pessoal ou que teimem em discordar de fatos, do histórico dessa pandemia em outros países, e das evidências científicas. Aqueles que o fizerem merecem ser lembrados pela incúria e perda de tempo, pela absoluta irresponsabilidade e incapacidade de liderar. Exceto esses, fomos todos cigarras neste episódio.

Ressalte-se, que durante uma pandemia, precisa-se respeitar os direitos e liberdades individuais, considerando as necessidades do público em geral. Quaisquer estruturas de tomada de decisão que se use nesses tempos excepcionais devem considerar os princípios tradicionais da ética médica, mas também devem refletir os princípios fundamentais da ética em saúde pública. E neste contexto um grande dilema se nos apresenta: Devemos agir como universalistas ou utilitaristas?

O utilitarismo é uma teoria filosófica que defende que uma idéia só é moralmente correta se as suas consequências promoverem o bem estar coletivo. Por essa visão, o bem estar de 210 milhões de brasileiros se sobrepõe ao sacrifício de alguns. É a lógica de Thanus, no filme (blockbuster) Vingadores, ao propor erradicar metade da população mundial para salvar o planeta e a própria humanidade. Essa teoria se aplica, e do meu ponto de vista com muita pertinência, quando se cogitou aplicar bilhões dos recursos destinados ao fundo partidário para o combate da epidemia Covid 19. Infelizmente nossa corte suprema e nossos políticos agiram de maneira egoísta, pouco republicana e vetaram a proposta que beneficiaria milhares de pessoas.

Para os universalistas, nenhuma morte é aceitável, e todos merecem viver. O isolamento pois, é um conflito ético universalista, dê certo, ou não pois a vida não tem preço e mortes não podem ser admitidas. Um bom exemplo disto foi dado recentemente pelo Ministro Mandetta, ao declarar que, na faculdade, um médico aprende que nunca deve abandonar um paciente pois nenhuma morte é aceitável – Faz parte da formação médica não aceitá-la.

Estamos nesse momento sentindo na pele as consequências de uma tomada de decisão híbrida – universalista, ao praticamente paralisar a economia e recomendar o isolamento social, e utilitarista, ao permitir que profissionais de saúde, motoristas, funcionários de supermercados e farmácias continuem expostos ao vírus em favor de um bem maior.

A Paraíba, um dos estados mais pobres economicamente, mas rico em valores humanos, experimenta momento diferente e atrasado em relação a outros estados, notadamente São Paulo, no que diz respeito à epidemia. Essa talvez seja uma vantagem estratégica que pode permitir ganhar mais tempo para uma melhor preparação, e estruturação, com equipamentos e condições de mitigação dos danos que necessariamente virão.

Com um pouco de sabedoria e bom senso, espero que as nossas autoridades sanitárias, mas também cada um de nós, cidadãos paraibanos, trabalhe como a formiga, não negue a dura realidade, e saiba dosar bem estar pessoal e coletivo, universalismo e utilitarismo.

Talvez seja esperar demais, afinal somos Homo sapiens. Mas nessas horas desejaria fortemente que a frase de Eduardo Galeano se fizesse realidade. De acordo com o pensador “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso, para que eu não deixe de caminhar”.

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